Um manifesto animista

Futuro Possível
Revista Possível
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6 min readAug 17, 2020

Graham Harvey — é pesquisador de Estudos Religiosos na Open University desde 1993 e também é o Presidente da Associação Britânica para o Estudo das Religiões. Além do Animismo, seu trabalho cobriu uma ampla gama de assuntos, desde Judaísmo, Paganismo, Religiões Indígenas e Xamanismo.

Tradução por Thais Soares — advogada e entusiasta de uma cultura regenerativa

Tudo o que existe vive

Tudo o que vive é digno de respeito

Você não precisa gostar do que respeita

Não gostar de alguém não é motivo para não respeitá-lo

Respeitar alguém não é motivo para não comê-lo

As razões são melhor entendidas nas relaçōes — especialmente se você está procurando motivos para comer alguém — ou se você está procurando motivos para não ser comido

Se você concorda que tudo o que existe é vivo e digno de respeito, é melhor falar sobre “indivíduos” ou “pessoas” em vez de “seres” ou “espíritos”, muito menos “biomecanismos”,

“Recursos”, “posses” e “objetos”

O mundo está cheio de indivíduos (pessoas, se você preferir), mas poucas delas são humanas

O mundo está cheio de pessoas mais-do-que-humanas

O mundo está cheio de pessoas mais-do-que-carvalhos

O mundo está cheio de pessoas mais-do-que-ouriços

O mundo está cheio de pessoas mais-do-que-salmões

O mundo está cheio de pessoas mais-do-que-martim-pescadores

O mundo está cheio de pessoas mais-do-que-pedras …

“mais-do-que“ possui pelo menos três referências:

nos lembra que somos pessoas em relação com os outros,

isso nos lembra que muitos de nossos parentes mais próximos são humanos, enquanto os parentes mais próximos de carvalhos são carvalhos, por isso falamos mais facilmente com os seres humanos, enquanto as rochas falam mais facilmente com outras pedras …

nos lembra de falar primeiro do que sabemos melhor (daqueles que estão mais próximos de nós)

Faça essas quatro referências:

isso nos lembra de celebrar a diferença como uma oportunidade de expandir nossos

relacionamentos, em vez de vê-la como causa de conflito ou conquista

Toda a vida é relacional e não devemos colapsar nossas alteridades íntimas em identidades

Os outros e a diversidade nos mantêm abertos à mudança, abertos ao devir, nunca finalmente fixados em ser

As alteridades resistem à entropia e incentivam a criatividade através da relacionalidade, socialidade (ou, como William Blake disse: “inimizade é verdadeira amizade”)

O animismo não é monista nem dualista, está apenas começando quando você vai além

contando um, dois… No seu melhor, é completo, glorioso, sem vergonha, desenfreado

pluralista

Respeito significa ser cauteloso e construtivo

É aproximar-se cautelosamente dos outros — e nossos próprios desejos,

É construir relacionamentos, construir oportunidades para conversar, se relacionar, ouvir,

passar um tempo frente à frente e na companhia de outras pessoas

É cuidar, proteger, se importar, ser cuidadoso com…

Isso pode ser demonstrado por deixar sozinho e por dar presentes

Defensores dos “direitos humanos”, por exemplo, demonstram sua crença em direitos não

apenas apoiando legislação para proteger indivíduos de estados, empresas e maiorias, mas também ao não insistir em monopolizar toda a estrada ou calçada, não insistindo que outro humano saia do caminho em uma rua movimentada …

Você não precisa abraçar todas as árvores para mostrar respeito, mas pode ter que deixar as árvores crescerem onde elas quiserem — talvez você precise mudar suas linhas telefônicas ou estufas. Você pode ter que construir aquela estrada longe daquela rocha ou daquela árvore

Abraçar árvores que você não conhece pode ser grosseiro — tente se apresentar primeiro

O mundo e o cosmos estão cheios de vida mas isso não o torna um lugar agradável e fácil para viver. Muitas pessoas são hostis umas com as outras. Muitos nos vêem como um bom jantar. Eles podem nos respeitar enquanto nos comem. Ou eles podem precisar de educação. Como nós, eles podem aprender melhor relacionando-se com outras pessoas que demonstram respeito, mesmo com aquelas de quem não gostam, e especialmente com aquelas de quem elas gostam do sabor.

Embora a evolução não tenha objetivo, a vida não é sem sentido. O objetivo da vida é sermos boas pessoas — e bons humanos, boas pedras ou bons texugos. O que temos que descobrir é o que ‘bom’ significa onde estamos, quando estamos, com quem estamos e assim por diante. Isto é certamente relacionado com a palavra “respeito” e todos os atos que isso implica.

Como tudo o que existe vive — e como tudo o que vive é, em alguns sentidos, até certo ponto, consciente, comunicativo e relacional — e já que muitas das pessoas com quem nós, humanos, compartilhamos este planeta, têm uma idéia muito melhor do que está acontecendo do que nós — nós agora podemos parar toda a tolice de sermos o auge da criação, a mais alta conquista da evolução, a autoconsciência do mundo ou cosmos… Somos apenas parte de toda a comunidade viva e temos muito a aprender. Nosso trabalho não é salvar o planeta, ou falar pelos animais, ou evoluir para estados mais elevados. Muitas pessoas mais-do-que-humanas já estão bem conscientes de si, muito obrigado, e se prestarmos atenção, podemos aprender algumas coisas nós mesmos. A propósito, provavelmente não estamos sozinhos ao nos confundirmos com as pessoas mais importantes do mundo: ouriços provavelmente pensam que o são (mas eles são bestas cheias de pulgas, por que acreditar neles ?!) “

Hum, quando eu disse que “tudo o que existe vive”, não tenho certeza sobre sacolas plásticas.

Mas estou certo de que não devemos tratar objetos como meros recursos, de alguma forma disponíveis ou mesmo dado a nós, ou à humanidade, para usar como quisermos ou desejarmos. Há uma diferença entre “coisas” e “objetos”. A maneira como falamos faz parte da maneira como tratamos os outros.

As coisas podem acontecer conosco (é uma referência astuta, embora obscura, à palavra saxã para conselho ou parlamento, uma “coisa”). Os objetos são vistos, usados, jogados. Relacionar-se com coisas é diferente do que relacionar-se à objetos.

A propósito, não ha nenhum “fora” para onde jogar coisas.

Da mesma forma, com palavras como “substâncias”, especialmente aquelas que existem dentro de plantas e pessoas fungo. As substâncias existem, mas elas não são nossas até que nos sejam dadas, presenteadas à nós. E então é melhor descobrirmos o porquê de recebermos quaisquer presente que nos seja dado. E é melhor perguntarmos como esses presentes podem ser mais bem utilizados (seja por prazer, poder, sabedoria ou o que for). Isto é especialmente verdade se a pessoa planta ou cogumelo que oferece-nos a substância-presente tem de perder a vida no processo.

Talvez às vezes os cogumelos apenas querem nos ajudar a participar da grande conversa que está acontecendo ao nosso redor. Mas nem todas as rochas, peixes, plantas, fungos, pássaros, animais ou seres humanos querem falar com a gente:

Às vezes eles querem ficar quietos

Às vezes eles querem ser rudes

Às vezes eles têm outras preocupações

Às vezes eles não entendem

Às vezes não falamos o idioma

Às vezes, não sabemos o presente apropriado

A maneira precisa e correta de demonstrar respeito depende de onde você está, quem é, quem você está respeitando e o que eles esperam. Presentes, como espadas e palavras, têm mais do que um lado. O álcool é um presente em um lugar, um veneno em outro lugar. Apertos de mão são amigável em um lugar, demonstração de força em outro lugar. “Beijar é respeitoso para algumas pessoas, um ataque à outras. Etiqueta respeitosa é um trabalho árduo, mas sua recompensa é a mais completa participação na grande e emocionante comunidade da vida.

Às vezes precisamos de xamãs para falar por nós

Às vezes precisamos de xamãs para falar conosco

O animismo está logo acima da ponte que fecha a lacuna cartesiana ao saber como responder à pergunta, qual é a sua cor favorita? Talvez seja a ponte. Possivelmente não há lacunas e animistas são pessoas que se recusam a conspirar com a ilusão.

O animismo é frequentemente descoberto sentando-se sob árvores, nas colinas, nos rios, com ouriços, ao lado de fogueiras… O animismo é melhor comunicado em histórias de heróis trapaceiros, canções comoventes, poemas poderosos, rituais estimulantes e/ou etiqueta elementar do que nos manifestos.

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Movimento que investiga futuros possíveis a partir da lente da regeneração.