Acessando algo significativo que quer emergir

Futuro Possível
Revista Possível
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9 min readAug 17, 2020

Por Monica Noda — atua nas áreas de inovação social, design de transição e estratégia de marca para um futuro sustentável. Monica tem um MBA pela ESADE Business School e é formada em Comunicação Social pela ESPM. Uma cidadã global que já viveu e trabalhou em todos os continentes. Monica é co-criadora do Blockos.tv, uma uma série de entretenimento musical para o desenvolvimento sócio emocional durante a primeira infância, reconhecido como uma das três melhores inovações para a Educação do Século 21 pela Singularity University. Como a co-criadora original do Cambia Festival, ela tem liderado esse movimento global em seu futuro emergente.

Esse texto foi originalmente publicado no blog do Presencing Institute

imagem: enso ecosystem

Parte 1 — Cambia Festival em uma jornada de transformação social

Este é o primeiro de uma série de cinco artigos que contam a história da jornada do Cambia Festival no u.lab-2x — Societal Transformation Lab 2019, um programa do Presencing Institute para equipes construindo sistemas sociais mais justos e sustentáveis ​​ao redor do mundo. A sequência desta série é:

1 | Acessando algo significativo que quer emergir

2 | Indo para os lugares de maior potencial

3 | Superando a violência através da música

4 | Construindo comunidade diante do colapso ecológico

5 | Espalhando a transformação social para novos territórios

Capa de evento do Facebook para o Cambia Festival u.lab-2x — Jornada Aberta de Inovação

Oi. Eu sou a Monica e esta é a história da minha primeira experiência com a Teoria U, uma jornada profunda rumo ao futuro emergente que levou a minha equipe até as margens do sistema em uma missão para transformar a sociedade e quebrar as barreiras entre diferentes movimentos, classes sociais, etnias e gerações. E, de bônus, conhecemos o Otto Scharmer pessoalmente no meio do caminho.

Projetado para emergências positivas (Abril de 2018)

O Cambia Festival foi o meu projeto de grupo durante um programa de Design para a Sustentabilidade do Gaia Education, em São Paulo (Brasil, 2018). Como parte da “Vila de Novas Economias”, nosso objetivo era co-criar e construir algo coletivamente, abrangendo as dimensões social, econômica, ecológica e de visão de mundo. Nossa inspiração inicial começou ao explorar a pergunta: “O que poderia acontecer com um sistema social sem o dinheiro?”.

(legenda foto) Círculo dos Sonhos (Vila de Novas Economias — Gaia Education, Instituto Biológico, São Paulo, 22 de abril de 2018).

Livrar-se do dinheiro completamente soava radical e mais tarde se tornaria um dos principais objetivos de todos os nossos experimentos baseados em ação. A escassez do dinheiro, nossa dependência nele e falta de mobilidade foram os principais temas de preocupação para o nosso grupo. Nós passamos a maior parte das nossas vidas sem questionar como a tecnologia mais importante da nossa sociedade — o dinheiro — amplifica muitos dos aspectos das crises e separações globais atuais. Vivemos em uma economia baseada na dívida que requer crescimento econômico sem fim, impulsionando excessivamente o consumo sem levar em conta a destruição da nossa biosfera. Um sistema disfuncional que gera escassez artificial e uma dinâmica ganha-perde que reforça a desigualdade extrema.

Ronaldo Crispim, um dos membros da nossa equipe, sugeriu que construíssemos um “festival de dádivas” e experimentássemos algo fora do nosso sistema monetário. A oferta de “dádivas” ressoou profundamente dentro de cada um de nós. Quando todos concordamos com essa ideia inicial, o nosso grupo sentou em um círculo para um sonho coletivo. O que sonhamos durante essa conversa generativa foi eventualmente traduzido nos princípios que guiam a cultura do Cambia Festival.

Os 8 princípios que guiam a cultura do Cambia Festival (Fonte Cambia Festival).

A edição do protótipo original do Cambia Festival — Sociedade Transformando a Economia — aconteceu na UMAPAZ, em São Paulo, uma Universidade Aberta para o Meio Ambiente e a Cultura da Paz, parte da Secretaria Municipal de Educação Ambiental em julho de 2018, pouco mais de dois meses após sua concepção original no círculo dos sonhos.

Inspirada em um formato de “desconferência”, todos os participantes do Cambia Festival foram convidados a compartilhar seus conhecimentos e habilidades e praticar o ato de presentear. O espaço foi oferecido gratuitamente, assim como todas as 32 atividades auto-organizadas e a comida que compartilhamos naquele dia. Construímos o festival inteiro por aproximadamente R$ 10, gastos em artigos de papelaria, e compostamos todos os resíduos orgânicos gerados.

O Cambia Festival Original foi um experimento social que nos permitiu materializar e imaginar uma possível economia baseada em uma cultura de compartilhar e no senso de comunidade, ao cooperar com os outros para construir algo significativo juntos.

vídeo Cambia Festival Original — Sociedade Transformando a Economia (UMAPAZ, São Paulo, julho de 2018)

A magia do primeiro Cambia Festival tocou profundamente muitas pessoas e, após o nosso primeiro “encontro”, surgiram muitas novas ideias para diferentes edições. Em novembro de 2018, dois colegas meus, Cristina Zimmermann e João Leme, sugeriram que participássemos do u.lab-2x inaugural — Societal Transformation Lab. O u.lab-2x é um ecossistema global de inovação para agentes de mudanças ativando transformações sistêmicas guiadas pelos métodos da Teoria U, criados pelo Otto Scharmer, co-fundador do Presencing Institute, economista e professor sênior do MIT (Massachusetts Institute of Technology). O programa utiliza tecnologias sociais inovadoras, mesclando o pensamento sistêmico com o “sentir” sistêmico para apoiar equipes a evoluírem de protótipos para o impacto ecossistêmico.

Fonte: Societal Transformation Lab — Presencing Institute

Na época do seu lançamento, eu estava perplexa com o que estava acontecendo no mundo. Vários relatórios alarmantes haviam sido divulgados, como o relatório de mudanças climáticas do IPCC, o relatório da perda de biodiversidade do WWF, e o Bolsonaro tinha acabado de ser eleito. Tudo em questão de semanas. A possibilidade de fazer parte de uma jornada global online para offline para transformar a sociedade parecia uma oportunidade ideal para aprimorar a minha capacidade de descobrir novas potencialidades do mundo real e fazer algo prático a respeito da bagunça em que estávamos inseridos.

A melhor maneira de entender a Teoria U é por meio da da experiência prática e o u.lab-2x foi a minha introdução à mudança de sistemas baseado na transformação da consciência. Foi uma aventura fascinante em liderar a partir do futuro que emerge.

Co-Iniciação — Uma Jornada Aberta de Inovação (Dezembro 2018)

Depois de receber a confirmação de que nos uniríamos a 300 equipes de todo o mundo no u.lab-2x, montamos uma conta no Instagram do Cambia Festival (@cambia.festival), uma página no Facebook e criamos um evento chamado “Jornada Aberta de Inovação”. As pessoas foram convidadas a se inscreverem através de formulários do Google e a participarem da co-criação da próxima fase do Cambia Festival, na preparação para o seu lançamento global.

Jornada Aberta de Inovação do Cambia Festival — Campanha de Borboleta (Fotos do Unplash.com)

Em poucas semanas recebemos 135 inscrições de um grupo incrível e diverso de agentes de mudança. Rapidamente entendemos que a nossa equipe original (três pessoas) não conseguiria lidar com um grupo tão grande. Então no processo, também abrimos inscrições para novos membros entrarem para a equipe principal. Algo sobre a chamada aberta de inovação do Cambia ressoou em muitas pessoas, o que nos levou a formar dois centros de inovação, um em São Paulo e outro no Rio de Janeiro.

Adam Yukelson, co-criador do u.lab-2x, observou que, baseado na resposta à nossa chamada, parecia que estávamos acessando algo significativo querendo emergir…

O processo do U: 1 processo, 5 movimentos (Fonte: The Presencing Institute)

Mapeamento 3D — Co-sentindo o sistema que queremos mudar (fevereiro 2019)

O mapeamento 3D foi a primeira ferramenta que aprendemos em uma sessão online com a equipe do Presencing Institute. Essa prática ajuda grupos a observarem os vários elementos, dimensões e perspectivas de um sistema juntos. No workshop 3D do Cambia Festival, todos os participantes foram convidados a trazerem um objeto que representasse o sistema que queríamos transformar. Deixamos o “sistema” livre para interpretação. Havia cerca de 25 de nós lá, representando a ampla diversidade da nossa sociedade. Nos dividimos em 4 grupos, cada um com a nossa própria mesa, materiais e um facilitador.

(legenda foto) Modelos 1 e 2 — Mapeamento 3D do Cambia Festival (UMAPAZ, São Paulo, 14 de fevereiro de 2019) — fotos por João Leme.
Modelos 3 e 4 — Mapeamento 3D do Cambia Festival (UMAPAZ, São Paulo, 14 de fevereiro de 2019) — fotos por João Leme;

Nosso mapeamento 3D foi profundo. Em algumas horas, encaramos o colapso social e ambiental iminente dos nossos tempos, reconhecemos as forças invisíveis e mais profundas que moldam o sistema que queremos transformar e, em seguida, entramos para um campo completamente novo do futuro, que nos permitiu enxergar uma nova cultura regenerativa emergindo através dos modelos 3D do Cambia Festival.

Aqui estão algumas observações importantes do estado atual do sistema que mapeamos durante este exercício:

  1. Existem muitos bloqueios que nos impedem de evoluir para uma sociedade mais desejável relacionada ao nosso próprio mundo interior: nossos medos, egoísmo, apatia, ignorância e, em particular, a violência, entre nós e também entre humanos e outras espécies.
  2. Embora estejamos conectados digitalmente, sentimos uma sensação de isolamento / solidão, desinformação e um rebaixamento geral do bem-estar humano relacionado ao uso da tecnologia.
  3. O dinheiro molda o sistema. O consumo — e o desejo de acumular mais — intensificam sua degradação, destroem o planeta e nos aproximam do “apocalipse” (representado por um dragão de brinquedo em um de nossos modelos).
  4. As fontes de poder estão interessadas apenas em servir a si mesmas e estão isoladas das reais necessidades das pessoas.
  5. Tivemos que encarar o nosso próprio papel na degeneração do nosso sistema falido e também o nosso lugar de responsabilidade pela lacuna entre o saber e o fazer: a desconexão entre a consciência coletiva de que nossos padrões de vida não nos servem mais e a ação coletiva para a transformação que estamos precisando.
Mapeamento 3D do Cambia Festival (UMAPAZ, São Paulo, 14 de fevereiro de 2019) — fotos por João Leme

O exercício 3D também nos mostrou que nem tudo está perdido. Existe esperança. Existe luz, mas ela não está distribuída de forma uniforme. Existe amor, mas ele está reprimido. Nós temos o potencial de “polinizar” o mundo com esperança e amor. Um dos nossos modelos nos mostrou um primeiro passo fundamental para a transição do isolamento para o nosso sistema futuro: nos conectarmos com a natureza, representada por uma imagem de mãos sobre a terra.

Uma mudança estrutural no mesmo modelo ocorreu depois que removemos os interesses na busca por lucro, principalmente sobre os recursos naturais. O sistema passou por um ciclo de regeneração e o “apocalipse” retrocedeu. Em nosso sistema futuro, o paradigma econômico, baseado em crescimento e consumo, é substituído por uma economia circular e uma visão de mundo de “Gaia” (James Lovelock, Teoria dos Sistemas Vivos).

Novas possibilidades também surgiram quando eliminamos a violência de um dos nossos modelos 3D. Foi aberto um espaço para conexões mais significativas entre as pessoas e a vida em comunidade começou a florescer. Este grupo criou um espaço de aprendizagem baseado no amor. Outro grupo identificou um potencial para elevar o nível de consciência e identificou um lugar para “o mistério” no nosso sistema futuro, representado por um buraco que surgiu na base de um nos nossos modelos 3D.

Próximos passos:

Mais do que uma lista dos principais atores do sistema, alguns lugares de maior potencial surgiram a partir deste exercício:

(1) Uma jornada de aprendizagem para o Jardim Nakamura, um bairro pobre de São Paulo, que sofreu uma notável queda nas taxas de criminalidade após a implementação de uma série de iniciativas lideradas pela comunidade local, talvez melhor representada pelo trabalho do Instituto Favela da Paz.

(2) Uma visita à Bolsa de Valores de São Paulo (BOVESPA) ou uma entrevista com alguém que possa nos ajudar a obter uma perspectiva diferente sobre a natureza ultra competitiva da nossa cultura dominante.

Nos próximos artigos desta série, continuaremos a contar a história do Cambia Festival, o que aprendemos em nossas visitas aos lugares de maior potencial e o que aconteceu em nossos protótipos para transformar a sociedade.

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Movimento que investiga futuros possíveis a partir da lente da regeneração.