À minha mãe adotiva e suas filhas, com amor.

ETA Santo André
comorgulho
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4 min readFeb 26, 2021
Paulo Reis

Eu sabia aos sete anos de idade que eu gostava de uma forma diferente dos meninos.

Uma criança aos sete anos de idade já precisa saber ou entender o que é perder alguém?

Essa pergunta ficou latejando em minha cabeça durante anos, pois foi nessa idade que meu pai teve que nos deixar e não era mais matéria e sim uma lembrança que fico buscando os detalhes em minha cabeça para jamais esquecer. Uma mãe que viu seus filhos serem entregues para pessoas de sua família também foi outra coisa que me deixou reflexivo durante longos anos. Por que separar essas crianças entre a família, por que não deixá-las com a mãe biológica?

Aconteceu como um sonho, onde você dorme e acorda, a única diferença é que era real. Eu dormi e acordei várias vezes na casa da minha “Madrinha“, que com um ano em que fiquei presente ali, por algum motivo ela quis e achou que eu precisava ser devolvido. Um ano em uma casa de duas mulheres. Aquele menino não cabia mais. Hoje eu entendo que carreguei durante anos da minha vida a sensação de ter sido devolvido e, como eu não queria mais, eu não questionava nada, aceitava tudo.

Já morando na casa da esposa do primo do meu pai, ali eu ia tentar resistir e agarrar todas as possibilidades para que eu não fosse mais devolvido, por mais que meu sonho era viver com minha mãe biológica e meus irmãos. Eram pensamentos que bagunçavam minha cabeça e, junto com eles, o fato: “Sou Gay”.

Tive que me tornar um homem forte para poder me assumir. Agora eu estava presenteado em uma casa com mais seis mulheres e um homem. Aos 23, com idade já avançada, com escolhas mais determinadas e com uma família que me amava, tudo aconteceu em um café da manhã.

Em uma manhã de sol, aquela luz que entrava pela janela da cozinha era simplesmente mágica. Ao abrir a porta da cozinha, dava em meu quarto, que era do lado de fora de casa, uma edícula, como dizem hoje. Eu particularmente odiava ter que dormir em um quarto sozinho e fora de casa. Sei lá, era uma sensação ruim.

Café da manhã. Ao olhar para as mulheres com quem eu vivia, eu já as amava profundamente e sabia que ali era um porto seguro. Elas e ele me davam o que eles entendiam de amor. Era assim aos 23 anos de idade e com o sonho de ser ator aguçado em meu ser.

Jussara, mais nova que eu, com 20 anos, não resistindo à curiosidade natural da humana e virginiana, pergunta o que queriam saber: “Paulo, você é gay?”

— Quando eu souber eu te aviso.

“Silêncio, tome quieto o seu café já que você não dará a resposta que eu quero ouvir.” Esse foi meu pensamento que durou o resto do dia. “Quieto, rapaz”, silenciado por mim mesmo.

O dia foi se passando e eu carregando algo que nem eu entendia. As coisas poderiam ter sido mais leves se eu tivesse entendido o recado nas entrelinhas daquela pergunta. Anoiteceu naquela casa em Pirituba, onde me tornei o homem que sou hoje.

As noites naquela época eram sempre muito boas, eu adorava assistir TV com minha mãe adotiva e conversar amenidades da vida. Juro, não era fofoca, quem morreu com esse título foi meu pai, fiquei sabendo anos depois de sua morte, ao querer entender quem foi Francisco de Assis Lourenço Batista.

Sentado ali na cama daquela mulher e batendo papo, que para mim ela teve coragem de demonstrar que me amava. “Paulo, você é o filho que não tive, independente da sua sexualidade, você é meu filho e jamais esqueça que eu e sua mãe te amamos” — A vida inteira ela foi assim, nunca deixou eu esquecer que eu tinha uma mãe e que ela era um bônus que a vida me deu.

Fui para o meu quarto e ficava pensando “Como assim sou o filho que ela não teve?” Às vezes era meio difícil demonstrar amor, aprendi com os anos que é lindo amar os que ali à volta estão. Chorei todas as amenidades sozinho naquele quarto que eu não gostava de dormir, pois me sentia sozinho. Aquelas palavras tinham gosto de amor e aceitação, e foram direto para o meu peito, fizeram que meu coração ficasse calmo como nunca tinha ficado antes.

Manhã de sábado, café da manhã, o sol novamente radiante entrando pela janela da cozinha. Ele estava diferente, parecia que ele sabia que o abacaxi descascado na mesa fora descascado para mim.

Jussara. Eu sempre amei todas aquelas meninas, mas a Jussara nesse dia era o centro da revelação que iria acontecer. Mentalmente eu gritava, como em um show de drag queen… “Todas prontas?” Elas sorriam para mim gentilmente e não tive dúvidas.

— Meninas e mami: sou gay! Não doía mais aquela frase, pois uma das mulheres mais importantes da minha vida já havia me liberado o amor.

Todas:

— Ok, já sabíamos!

O café continuou e lembro me de alguém dizer:

— Passa o presunto!

Paulo Reis

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ETA Santo André
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