A cara do pai

ETA Santo André
comorgulho
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5 min readMar 2, 2021
Alessandra Reis

Minha mãe sempre dizia que puxei ao meu pai. Meu velho de semblante cansado, sobrecarregado, a desvanecer. Ríspido em alguns pontos e manso nos demais. Nos parecemos também no jeito de ser: intensos, teimosos e sentimentais. Precisa ver quando algo nos toca fundo, o mar escoando fácil pelas faces.

Meu velho ensinou-me a amar, a vida, aos outros: faça o bem sem olhar a quem, ele dizia. Eu assentia e seguia as suas palavras. Acho meu velho sábio, mesmo sem ter estudos. É sabedor da arte de viver, ainda que por caminhos absurdos.

O bem-querer ao meu pai é como pele a recobrir-me o corpo. É que ele é de afetos, abraços, beijos, de dizer o que pensa, sente, ainda que doa. Minha mãe, mais contida na maneira de amar é também mais silêncio. Meu pai riso, choro, sonho, palavra, colo, porto. Nosso elo solto, leve igual garoa.

Meus pais batalharam muito pela minha existência, pois como nuvem que me sinto, vivo buscando o céu. Persistência talvez, de uma alma ao léu. Querendo, quem sabe, encontrar com meus irmãos que há tanto partiram. Uma realidade crua, exprimindo neles o nosso diagnóstico: anomalia no sangue em vidas de meia lua.

Uma vida toda de luta: internações contínuas, dores frequentes, entra e sai de UTI. Vida a se extinguir. Reza, benzedeiras, promessas. Tudo para que a vida não tivesse pressa em partir. Cada aniversário era uma festa, a vida se cumpria por mais um ano. E ainda que não tivesse bolo, tinha o mar nos olhos de meu pai.

Ano após ano, cresci em sua aprendizagem. Seguindo suas regras, suas leis. E quanto mais crescia, sabia que a minha essência verdadeira não caberia em nosso viver. Então fui vivendo, sem totalmente ser. Vivendo em parcelas de mim. Eu era aos poucos, mas tudo aquilo que meu pai queria: boa filha, amiga, colega de trabalho, vizinha. Nada que ferisse o olhar do outro, ou chegasse a ser assunto na boca alheia. Nada por inteira, apenas metade.

E como em minha intensidade, a metade não cabe, transbordei. Fui ser quem realmente sei: eu. Fui viver a minha essência, me entregar aos meus desejos. Sem mistérios, sem segredos, ser feliz. Tudo isso embaixo daquele nariz e ao mesmo tempo às escondidas. Conhecendo bem meu velho, não queria guerra, muito menos brigas, até descobrir como me revelar.

Não revelei. Ele um dia escancarou a porta do meu quarto, e assim de solavanco, viu-me ali em pleno amor. Na tela do computador outra mulher e nossas juras de amor rasgado ecoando pelo ambiente. Ele silente. Eu sem perceber até ver a expressão de horror em minha amada, e sentir em meus ombros aquelas mãos que tanto me protegeram e ampararam, me apertarem, arrancarem da mesa, chacoalharem. Enquanto ele puxava o computador da tomada, a tempestade em si gritava: — sua mentirosa, puta sem vergonha, que baixaria é essa debaixo do meu teto? O que é isso me diga? E eu sem conseguir exprimir palavra, desaguava.

As ondas de raiva que brotavam nele viraram angústia em mim.

Uma angústia em vômito, ânsia, diarreia, me tornando um lixo, um nada. E ele, em verborreia alucinada, urrava: — sem-vergonhice, antes fosse uma drogada, presa algemada, qualquer coisa, menos essa filha-da-putice. Quero que você morra! Você morreu pra mim!

Senti como se eu estivesse cometendo um crime. Mas que crime haveria em amar? Se ele não entendia, não seria eu a lhe explicar. Vontade imensa de sumir, vendo o chão sob os meus pés se esvair, meu mundo inteiro a desmoronar. Queria meu pai que eu morresse, sem perceber que me matara sem nenhuma compaixão. Morria naquele dia quem era a sua cara, diante de sua ignorância. Morrendo igual criança morre de desnutrição.

Meu velho me disse que nunca mais me olharia, e saiu do quarto berrando. Gritando em polvorosa que tinha em casa uma mentirosa, uma puta sem vergonha e ninguém sabia. Minha mãe com sua tirania veio me confrontar, consegui dizer em meio ao pranto que não era sem-vergonhice e nem putaria, que era amor por uma mulher o que eu sentia. E que se ela, também me quisesse morta, esse desejo eu lhe daria. Ela não fez como meu pai, mas disse que aquilo não aceitaria, e depois silenciou. Coisa que eu já esperava, pois sempre soube ser só silêncio.

Os dias seguiram insuportáveis. Quem tanto lutou para que eu vivesse, ignorava-me constantemente. Acabou o afeto, colo, abraço, palavra, beijo, carinho, o amigo. Foi-se de vez o meu abrigo e com ele, parte de mim. Ficamos quase um ano sem nos falarmos, mas segui vivendo. A todos os seus conselhos desobedecendo. Distante de nossa imensidão fui alçar novos mares, encontrar novo chão.

Mudei-me para Salvador, vivenciar aquele amor que tanto desejava. Fui ser quem era prontamente, sem receio. Fui ser por inteiro e bem pertinho do mar.

Encontrei outro cais, distante de tudo que lembrasse os meus pais. Entre livros, redes, sombra e água de coco. Vivi dias iluminados ao pôr do sol. Em nova vida, novo rumo, um novo farol.

Mas o amor durou pouco. E em desgosto, atentei contra a minha vida. A nuvem que em mim habita, outra vez buscando o céu. Minha alma novamente ao léu. É que essa intensidade em mim não tem hora certa em se revelar. Quem foi feita de sonhos, não sabe viver sem sonhar. Retornei para a casa dos meus pais. Sem vontade de viver, nem nada, nem me importava em retroceder e andar por aquela casa, feito alma penada.

Mas ao regressar, foi uma surpresa. O verdadeiro amor se fez certeza e meu pai, que era meu refúgio e meu norte, voltando a ser quem ele é: afeto, carinho, consolo, palavra, escudo, cais. Meu pai! Meu tudo e nada mais.

Hoje ele até chama de “genra” a minha amada. E há de quem fale mal de mim em sua presença, aquela tempestade que carrega em si é maremoto de desavença.

Alessandra Reis

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ETA Santo André
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Página dedicada à programação do Espaço de Tecnologias e Artes do Sesc Santo André.