Belvedere

ETA Santo André
comorgulho
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3 min readFeb 12, 2021
André Magalhães

Comecemos deixando uma coisa explícita: Quem vos fala aqui do solo fuliginoso, usado duas vezes apenas desde que fui deixado aqui é Calvin, 36. Gêmeos, ascendente em virgem e super pé no chão. Flexível, confortável, caseiro. Sempre aos seus pés. Sempre. E falo aqui o que tenho visto nesses últimos dias. Não sei por quanto tempo mais. Não sei, não.

Sentada na beira da cama, roupa da rua e cheirando a pastelaria chinesa, ela me afabula. Mede o pé do moço com a vista hipermetropiada, volta a me observar. Eu aqui imóvel, paradão mesmo. Como sempre foi. A retórica já está ali no palato duro, é visível. Vejo também o receio que essa senhora sente quando pergunta qualquer coisa. Qualquer coisa, qualquer. Ela desiste. Limpa a caspa da camiseta preta por não saber o que fazer com as mãos. A relação entre eles é estranha. Ontem mesmo ouvi, depois de gemidos embuçados, ele dizer que desde o primeiro ultrassom já perceberam que uma não pertencia ao outro. A cegonha não aguentou o peso no bico e jogou em qualquer canto. Caiu lá não sei onde numa noite esporádica de sexo entre os pais. Amor não era. Não. Não era, não. Diz ele. Eu só repito o que ouvi enquanto meu amigo limpava a gala da barba e mandava o boy tomar banho. Foi a primeira vez que aquele veio. Perfume forte. Esse não volta. Certeza. Não volta, não.

Os legumes estão lavados e são colocados na gaveta do refrigerador recém comprado. O antigo dono não deixou nem as lâmpadas. Tudo foi feito em treze dias. Da conversa com a esposa e o anúncio da separação; da conversa com a filha; da revelação aos amigos mais próximos até alugar o muquifo. Isso eu ouvi também. Tenho escutado muita coisa de muita gente nesses últimos dias. Vozes graves, na maior parte do tempo. E sempre no escuro. E sempre depois de rangidos. E sempre.

A televisão acesa sem som. O tempo passa? Não passa. Ele com silêncios ferroviários, ela uma locomotiva. Aproxima o pé e com a face virada para mim, sem cor: De quem é esse chinelo verde? Meu, diz ele. Cabe no seu pé? Não. Então é de quem, então? Do meu namorado.

Eita porra, eu penso. Ele olha a propaganda besta na tv muda. Ela com o olhar fixo em mim. Encaixa o pé sob minhas tiras de látex e deposita o peso de suas pernas no meu corpo contraído . Sinto que há um fetiche ali e me aborreço. Tenho dono e sou monogâmico. Se ela fosse mais doce até fingiria um choro contido, um lábio tilintando, uma cena de novela ruim com bossa nova ao fundo. Mas, não. Quando é que eu vou conhecer meu genro? Menos mal. Nada muda. Não há tensão, não há surpresa. Não há silêncio, não. Não há. Ele continua a ver o comercial da CVC. A mãe a falar das amigas que têm filhos bichas, mas olha, ninguém diz. Parecem homens. Eu só quero que ela vá embora e meu dono me busque. Só isso, só.

comadre (André Magalhães)

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Página dedicada à programação do Espaço de Tecnologias e Artes do Sesc Santo André.