Natalina

ETA Santo André
comorgulho
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3 min readMar 12, 2021
Zéza

Em uma noite de Natal. Eu levei um amigo pra passar a ceia com a minha família. Eu tinha 21 anos e era virgem ainda. Se eu era virgem, muito menos eu era assumido. Ele era só meu amigo. Na hora de dormir, ele ficou na cama de cima e eu na de baixo. Ele, eu não, percebeu que a porta do quarto estava abrindo e, como um predador, pulou em cima de mim com um baita beijo na boca. Eu, sem entender nada, correspondi como uma presa que almejara ser devorada toda a vida. Nada mais existia. Só o som da floresta misturado ao som dos dentes destroçando minhas vísceras virgens. Por alguns infinitos segundos, me esqueci onde eu estava. Me esqueci que era Natal. Me esqueci de mim.

Como um Papai Noel que havia entrado na chaminé errada, minha irmã entrou no quarto e viu o ataque consentido. Despertei com os sinos de Belém na minha cabeça, me lembrando que a noite feliz havia acabado naquele instante. Minha irmã, por seis meses, ameaçava constantemente contar para os meus pais o ocorrido naquela noite infeliz. Eu tinha que fazer tudo o que ela queria. Durante todo o semestre, eu fui pra ela de ajudante de bom velhinho a rena, que sem pena reinava soberana com a realeza dos três reis magos juntos.

Passado aquele tempo, fui na minha primeira festa LGBTQIA+. Um choque num balde cheio de lágrimas. Eu não podia imaginar que um lugar daquele, cheio de homens felizes, lindos e se pegando, pudesse existir. Fios desencapados. Tesões da mais alta voltagem. Eu saí de lá tremendo, antes da festa acabar, sem me despedir. Vaguei pela madrugada e até hoje eu não lembro por onde. Só sei que fui parar na casa de uma amiga, que estava comigo na festa e que havia chegado antes de mim. Passei o fim de semana na casa dela, chorando todos os rios e mares já derramados em toda a história QUEER.

No domingo eu estava disposto a acabar com as ameaças da Claus, que de Santa nada tinha. Liguei pra minha mãe, ainda úmido de pranto, e perguntei o que ela iria fazer. Ela: “Vou à igreja, meu filho.” Eu disse que iria junto. Ela: “Por que choras? Jesus, toma conta!” Eu disse que iria junto. Fim da ligação. Na minha cabeça oprimida, eu achava que eu partilhar do mundo dela (e eu nunca fui da igreja, graças às Deusas) ia deixá-la a fim de participar do meu mundo. Depois eu a imaginei, no meio daquela festa das maravilhas, falando em línguas, “shalabaxúria”, sai de retro. Foi quando eu percebi o quanto eu ainda estava impregnado pela imaginação limitada dela e o quanto seria urgente, dali pra frente, eu ultrapassar os limites do meu presépio familiar. Mas naquela tarde de domingo era aquilo que eu precisava, e tá tudo perdoado por mim mesmo, amém!

Chorei muito naquele culto. Ela achou que era o Espírito Santo me tomando e clamava aos céus ainda com mais fervor. “Shalabaxúria, meu filho está curado, em nome de Jesus!” No fim do ritual, ela chamou um jovem “irmão” da igreja pra conversar comigo e me dar as boas vindas. Ele era bem afeminado e eu me senti bem à vontade. Disse que tava ali pra falar pra minha mãe que eu era gay. O “irmão” gaguejou e não durou mais dez segundos na minha frente. Ele parecia que era eu e eu me senti a própria festa das maravilhas. Sumiu sem se despedir. Fomos pra casa, eu e minha mãe, e no caminho eu falei: “Mamãe, sou gay!” (como se ela não desconfiasse). Ela respondeu: “Ok. Te amo. Mas não traga isso pra dentro de casa. Não queremos saber.”

Até hoje, minha relação com minha família é assim. A diferença é que eu já não preciso mais que eles saibam de nada. Uma pena pra eles. Perdem essa festa maravilhosa que eu sou.

Zéza

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ETA Santo André
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