Relato de um vampiro que amava

ETA Santo André
comorgulho
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3 min readFeb 18, 2021
Marlus Alvarenga

Nem sabia que eu, com um segredo tão pesado de pesares, poderia flutuar, sendo eu ar ou pena, empenado em densidades menores do que poderia me pensar sendo humano. Era um caminho casa-vó-escola, na cidade cantada como escola-cinema-clube-televisão pelo poeta legionário. Era saída sem escolha e eu nem via que me casava com as ruas padronizadas, observava janelas secretas, entre área verde e residência, dessa satélite em relevo. Eu que nesse auge adolescente dos quatorze anos escrevia longas cartas poéticas de amor na cidade, que traduzia Alanis Morissette para as meninas da minha sala, que recobria desejos, me entorpecia por um amigo de nome raro. E se dar por amor a amigos se tornaria minha sina, de karma, consciente de uma inesperada submissão. Isn’t it ironic, don’t you think?

Raro era um dia assim, onde tocava violão com meu desejado rockeiro tão próximo de mim, onde eu pensava ser um vampiro aos moldes modernos da Anne Rice — e a fita do Entrevista com o Vampiro não saia do videocassete. Eu vestia preto e andava desenhando pentagramas nos bueiros. Quebrei mais copos enfeitiçados que poderia imaginar. Mas nem tudo seguiria tão messiânico, tão no campo da espera: eu sabia e sentia que poderia ir além, mas tinha medo. E o medo não era coisa de vampiro forte — deveria querer sangue e corpos mortos, mas queria corpos nus.

Um dia de pós férias, o menino raro não chegou. E na sua casa, que era na rua da minha avó, um placa de Aluga-se. Eu cheio de novidades da praia, um presente e um desejo imenso de dizer a ele o que sentia. Ele se foi. Foi para outra cidade, perto, mas outro lugar. Deixara o pai pela mãe, me deixou sem saber. O pai foi preso. Tráfico de drogas. Ele seguiu pro meu copo quebrado, amaldiçoado e espiritualizou-se. Espectrou-se. Vampirizou-se. Sumiu de mil de mins. Eu era uma legião de raiva e choro de amor partido. Com muita luta, em uma era onde o telefone fixo era a comunicação, eu demorei até conseguir seu número. Mas uma amiga de sala, aquela que tudo sabia, me confortou: roubou o número da mãe dele nos arquivos da escola. Ela era danada. A primeira a saber a verdade de mim.

Cheguei em casa ainda triste. Chorava ouvindo Renato Russo. Assistia Entrevista com o Vampiro. Chorava. Eu que parecia tão malvadão, era bem amoroso. Achava que nunca poderia dizer a ele o que sentia. Até que minha mãe chegou na sala da casa fria, vazia, eu ouvindo Maurício,

Mãe, amor é dor, não é? Já não sei dizer o que sinto e tirei 6 em matemática pois me apaixonei. Por um garoto, e isso não é bom.
Mas, meu filho, qual o problema? Amamos pessoas, seres, plantas, gato e cachorro. Amo você e sempre soube. Mas agora tira esse disco que eu não aguento mais.

Rimos. Acho que desvampirizei-me. Me encorporei de mim.
Nunca mais fui outro. O disco, agora empenado, nunca mais tocou.

Marlus Alvarenga.

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ETA Santo André
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