Traumática Mente

ETA Santo André
comorgulho
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5 min readFeb 19, 2021
Bruna Pires

Leila Roseli Pires
Pra mim e mais seis fetos quase
cheios de afeto: MAMÃE!

Após o parto
Primeira cria aos 17/18
arrancada de seus braços
ao mesmo tempo
que era expulsa de casa
Negra retinta, Preta sacudida
Vendia sorvete, não cuidava de casa de rico
mas sim de suas crias
não voltava pro ninho de bico vazio
ao mesmo tempo
que cascava o bico pra normatividade
Pessoa
amável, doce, dedicada, educada
Também
insegura, ignorante no sentido literal e
acadêmico da palavra e crente
que precisava de homem
pra se afirmar e sentir-se segura

Segunda cria,
I’m!
Eu e a primeira como
numa brincadeira maligna
do destino
em couros trocados

Bruno Ricci: Um Ser de Luz!
Acolheu ela quando precisou
muito de amor e compreensão
na adolescência
Eu queria tê-lo ouvido
direito
Eu queria tê-lo entendido
direito
E se ter feito diferente
talvez não me
permitisse ser quem sou hoje,
então fiz direito!
Minha transição pro vovô era o problema?
Agora vejo isso
E não seria para mamãe se
continuássemos ali, ao seu lado
talvez
Lembro-me de momentos em que
era posta a questões que envolviam
minha sexualidade e que isso os afetava
Não sabiam lidar
mas não me faltava amor e carinho
e tudo mais que uma criança
precisasse

Ela lia gibi pra mim
Ele a incentivava
Dizia que nos criasse, eu e meu irmão Léo (o terceiro)
Com boas maneiras, educação, brincadeiras saudáveis
Era uma vez por semana que
na volta da creche passávamos
na banca do Engenho e eu
podia escolher qual seria a sequência de
Maurício de Sousa que passaríamos a semana desbravando
Aprendi a ler assim
Minha mamãe

Mudamos da água
pro esgoto
O lugar era lindo, chácara na zona rural
Tínhamos uns aos outros, mas não tínhamos mais meu avô,
agora tínhamos um carrasco
Como se fosse agora, me vem a cena da despedida
Numa noite, ele chegou com um fusca
parou na porta de casa e minha mãe
sem hesitar colocou nossos pertences todos dentro do carro
Em desespero eu chorava, meu avô chorava, meu irmão chorava
Não entendia bem o que acontecia
Então meu avô me disse que mamãe estava grávida e
que tinha que obedecê-la sempre
e infelizmente teria que ir com ela
Suas últimas palavras naquela noite foram
Leila você vai se arrepender de entregar
sua vida e de seus filhos a esse homem

Seguimos à força e eu em prantos
Os primeiros dias foram muito difíceis
Eu não fazia ideia de que o pior ainda estava por vir
Ele chegava à noite do trabalho bêbado
brigava e nos batia
Não sei bem quantos dias
levaram para que ele nos negasse o leite das manhãs
qual estávamos acostumados
ou as misturas nas refeições
O silêncio de mamãe era assustador
A falta de meu silêncio o deixava
com mais vontade de
mal nos fazer
Numa noite colocou eu e meu irmão mais novo, Léo
pra dormir do lado de fora da casa. Uma chácara assustadora
Lembro-me da escuridão, os ventos chacoalhavam as árvores
Parecia que algo nos atacaria a qualquer momento
Éramos obrigados a chamá-lo de pai
No primeiro ano foi assim
Até que fui matriculada na escola do bairro
e com o passar dos meses fui
aprendendo a me proteger e calar, calada sempre
Sem choro, engole o choro. Sem sentimentos. Você é macho!
Foram afastados de nós três: sentimentos, choro, amor.

Quando nasceu meu irmão Leandro (o quarto)
o primeiro filho dele com mamãe
então fomos tratados com mais desprezo
Éramos como bastardos
A felicidade dos dois parecia acabar ao ver que não
tinham o que fazer conosco
Não dava pra devolver-nos
Mesmo nesse contexto horrível
me lembro nitidamente de mamãe
dar o sangue por nós
Quando estávamos sem sua presença
ela criou uma dependência em estar com ele
Mas quando não estava nos tratava bem
Eu via o medo em sua face quando ele chegava
À medida que seus filhos cresciam ela os via se afastando de
si e isso a magoava, machucava, mas não tinha reação
diante de tudo aquilo
que parecia um pesadelo

Sobre os abusos, foram assim que começaram
Olha aqui seu brinquedo
brinca com ele, sua mãe não vai saber
se você não contar e lavar a cuequinha
se sujar de sangue
Vai, você é viado, já da pra perceber
Vem, coloca a boca
dá um beijo nele
Eu sei que você quer ser menina
então vem cá, é isso que menina faz

Ela tá dormindo
só você ficar quieto
e se brincar você vai ser menina de verdade
Vem brincar, vem

Pode sentar, pular, pega
Ó como tá grande, coloca a boca, vai!
Brinca com ele

….

Anos passaram e a cada um novo
uma nova criança, ou pelo menos
de dois em dois, até de três em três anos
— não me lembro bem —
vinha uma criança nova, um novo e lindo bebê
Leandro, João Paulo, Jean e Fernanda
De todos tenho lembranças boas,
trocá-los, alimentá-los e protegê-los
quando bêbados estavam

Os abusos ficaram frequentes
à medida que eu crescia
até conseguir um emprego na chácara
ao lado da que mudamos em uma das três vezes
Ali no bairro mesmo
Dona Shirley, uma senhora que tinha
como negócio de família uma distribuidora de ovos
Aos sábados eu recebia e fugia direto
Pra casa da Vó, lembro-me que não queria
voltar mais, chorava, me trancava no banheiro
mas não tinha coragem de contar

Era uma ótima aluna na escola
Me dedicava ao mesmo tempo
que era abordada pelo meu comportamento feminino
Minha mãe era chamada
por diversas vezes, problemas disciplinares,
de postura ou falta dela
Não cabia ali.

Sempre chamei a atenção por ser “delicadinho demais”

Sem amigos,
tive a Maiara
Na quinta série a conheci
a reconheci em mim ao inverso
Uma menina sem trejeitos de menina
Nos demos muito bem, era quase vizinha de chácara
Ela entendia meu ser e eu o dela
Trocávamos segredos sobre nossas vontades

Tive uma ótima experiência na escola uma vez
Não me lembro ao certo
Sei que cheguei em casa e:
Mãe, eu sou uma estrela!
Com os braços abertos ao atravessar
a porta como quem pede um abraço
Coisa que já não acontecia há anos
Você é um homem ou um saco de batata?
Sou uma menina!
Quê? Honra o que você tem no meio das pernas,
do contrário sai da minha casa!
Fui embora sem contar que fui
estuprada desde os oito pelo
cara que ela disse que ama!
Tinha por volta de onze anos
Passei um tempo na casa de minha
avó materna, também na casa de uma amiga de minha
mãe chamada Rufina
Fui até durante um tempo
morar com o vovô adotivo,
mas nenhum desses lugares
me cabia
Não como eu queria.

….

Conheci as travas de Itatiba e assim fui ficando nas noites
do D’Lucca. Conheci homens, hormônios, possibilidades de ser a Bruna
Até que fui pra Jundiaí e assim comecei a trilhar meu caminho que me trouxe até aqui.

Bruna Pires

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ETA Santo André
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