Apresentação

Dri Kimura
Comprar as flores ela mesma
6 min readMay 30, 2017

Este texto faz parte do livro-reportagem Comprar as flores ela mesma

Para efeitos de formalidade, este livro é uma reportagem. Sinto-me, com isso, aliviada em lançar de antemão uma definição pronta, com todas as letras. A quem faltem as certezas e para os que têm pressa ou necessidade, que guardem isso. No mais, gosto de uma resposta de Rosa Montero à velha pergunta sobre as preferências por escrever literatura ou jornalismo: o jornalismo ao qual me dedico, que é escrito, de pena, de articulista e repórter, é um gênero literário como outro qualquer, comparável à poesia, à ficção ao drama, ao ensaio.

Em pleno 2016, tive a oportunidade de ouvir da boca do espetacular Ian McEwan que isso de se tornar escritor é uma ótima desculpa para não ter que arranjar um emprego. O jornalismo vem atravessando os anos vestindo-se e despindo-se de alternativa, um pouco ingênua — mas que já rendeu teses, palestras e livros para dar e vender -, para “viver de escrever”. Este livro não pretende se debruçar sobre as polêmicas que poderiam derivar dessa questão, mas acho que vale tentar um certo hibridismo — transitar entre os gêneros livremente e insistir no abuso desenfreado da experimentação ainda deve ser a melhor maneira de descobrir estilos de escrita — para um projeto experimental, ainda estamos em tempo.

Confesso que constantemente me deparo com as tentações de me esforçar para abranger ou esgotar completamente temas que tendem ao infinito em um único texto. Sem admitir categorias que cerceiem além da conta, um livro pode ser enlouquecedor ao tentar caber na primeira página. À parte isso, uma bagunça extrema e a libertação das amarras são decisivas para que outras ideias venham à tona e para que se concretize um processo de criação legítimo, mesmo na reportagem.

Quando Lydia Davis venceu o Man — pois é, o manBooker International Prize, em 2013, ela foi à FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty) e falou sobre seu processo de criação na escrita. A estratégia dela, arrisco dizer, parece-me familiar. Também Virginia Woolf, com sua arte do acaso e do cotidiano, e Rosa Montero, quando compara o surgimento de uma ideia para escrever com a aparição de uma humpback no Pacífico — essas duas que nunca me cansarei de citar -, fazem alusão à necessidade de respeitar a natureza fortuita da inspiração na escrita. Sabe-se que muitos sofrem do que chamam “bloqueio criativo”, uma espécie de ferrugem, entrave. Conforme explicou Lydia Davis, é preciso anotar em abundância. Alguns textos pode ser que fiquem por escrever, congelados no primeiro período brilhante e escasso, até que se amadureçam o suficiente para virem à tona; outros, desesperados, desabam por inteiro, assim, de uma vez só.

A presente reportagem não parte de uma única investigação, apesar de se estruturar ao redor de uma tese unificadora. A delimitação primeira é o tema da escrita ficcional; em seguida, pode-se dizer o recorte do feminino, na medida em que meu objeto se torna a mulher na ficção literária. Como espero que fique claro mais adiante, há, no que tange a esse tema, uma implicação — não necessariamente um compromisso — política e cultural que não poderia se separar da concepção do feminino na sociedade. A mulher, na maneira como se configura na ficção e através dos ecos propagados a partir da escrita, da narrativa, da representação e — com algumas ressalvas — de uma certa militância, é especialmente questionada, investigada, entrevistada através das lentes da literatura ficcional.

Como estamos falando em reportagem, todo tipo de material pertinente foi aproveitado ao máximo. Os adjetivos para categorias, como aprendi com um texto de uma amiga jornalista e escritora, podem, pela tendência a estabelecer parâmetros, acabar prejudicando as oportunidades que poderiam ser oferecidas por um ambiente devidamente plural. Este livro ainda não é nada — e isso me causa um alvoroço! Provavelmente, enquanto eu o esteja a ler, estarei a ter-lhe de acrescentar, modificar em característica infinitesimal. Não faz mal. A parte boa é que não termina enquanto houver disposição para ler e reler. Nunca se dá por feito, nem depois de impresso, um livro.

Eu li, sobre notas e datas, em Como funciona a ficção, de James Wood, a história de um cara que escreveu um livro em menos de dois meses apenas com os recursos de que gozava a bordo de um navio na região de Marselha. Queria, com isso, propor e justificar um certo desprendimento quanto à informalidade e a incompletude das datas e materiais explicativos. A reportagem, com as maravilhas do jornalismo de imersão e já tendo passado por maus bocados nas mãos de estagiários preguiçosos e antigos profissionais viciados em tradicionalismo, promete mais metamorfoses e leveza que o tal do texto acadêmico, que costuma arbitrar da jurisprudência dos comentários ao tamanho da fonte/espaçamento do texto. Então, sendo bastante oportunista, defenderei o meu direito de romancear sobre os fatos tão jornalísticos da vida cotidiana em busca de encontrar os fôlegos deste livro. Charlotte Brontë escreveu uma história da consciência privada quando se empenhou em Jane Eyre, Hunter S. Thompson fez o que bem entendeu com essa do gonzo, Jack Kerouac espalhou a quem quisesse ouvir que escreveu On the road em um único dia… e, bem, todos eles fizeram um grandioso sucesso com suas experiências. Quando Rosa Montero escreveu A louca da casa de maneira indefinida o suficiente para que os comentários não conseguissem chegar a uma conclusão sobre o gênero do livro, eu pensei: é isso, a louca da casa!

O formato de reportagem, alguns diriam, exige algumas formalidades em respeito às fontes e por uma documentação fidedigna — muitas vezes, arrisco dizer que esta é só uma maneira de o jornalista se eximir de uma possível culpa ou da necessidade de retratação; foi a fonte que disse, foi assim que aconteceu… é objetivo e impessoal. A problematização da transferência de responsabilidade no jornalismo poderia render uma pesquisa inteira, teses, doutorados. Na delimitação deste livro, que não pode se demorar tanto quanto eu gostaria, vamos assumir que o contrato com a verdade se estabelece principalmente pela riqueza de detalhes, pelas informações não poupadas e por um certo caráter de pós-modernidade que, nem se eu quisesse, poderia evitar. Espero, com isso, que possa caber na reportagem esse meu exercício — tão incansavelmente praticado durante a graduação — de adotar a crônica como gênero jornalístico; se me privasse disso, não seria eu e não seria a conclusão do meu curso.

Uma investigação não pode assumir informações que se saibam falsas, se quiser se aproximar da verdade, é fato. Mas, e isso é extremamente importante, também não deve dispensar especulações, ignorar os caminhos e as perguntas que ainda teriam potencial para vingar. A reportagem não pode deturpar seu compromisso com a verdade se engessando nas burocracias de documentos, pingos nos i’s e pés das letras dos entrevistados forçosamente catalogados em data, nome e página. Pessoas são pessoas, acontecimentos são acontecimentos. Certa vez, estive em um debate com um amigo acerca da legitimidade do jornalista que finge, traveste, se faz de desentendido para pegar no flagra a vida como ela é, no despreparo dos que não se sabem observados pelo olhar jornalístico. É verdade que saber perguntar sobre desconfortos em entrevistas agendadas é uma qualidade indispensável ao bom jornalista. Mas, também de fatos corriqueiros, que se dão sem permissão e que passam diante de nossos olhos, é que se fazem grandes reportagens devidamente contextualizadas, sem perdão.

O direito da mulher à individualidade, à complexidade intelectual e à profundidade psicológica na literatura; eis o incentivo e a busca do livro-reportagem Comprar as flores ela mesma. Depois de apresentado como Trabalho de Conclusão de Curso, em reimpressão, versão corrigida e devidamente autografada ;)

Porque precisamos nos dar ao trabalho de ler, nos deixarmos escrever e assim nos interpretarmos: mulheres.

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