Receitas de cabeça

Dri Kimura
Comprar as flores ela mesma
6 min readNov 18, 2020

A Vida Doméstica dos Adultos parte I.

Era 20 e poucos de março, o isolamento social ainda parecia uma questão muito relativa, mas nós já estávamos em casa. Se fôssemos levar aquilo a sério, pedir delivery de comida seria ao menos contraditório. Eu mesma me ofereci para fazer o almoço e assim temos nos mantido desde então, pelos pratos que experimento cozinhar e por aqueles que valem repetir.

Eu não sou muito de receitas. Quando era criança, gostava de ver programas sobre artesanato com papel, tecidos, cola branca e tesoura sem ponta. O que me fazia desistir era perceber que em alguns casos seria preciso ter muitos utensílios específicos e materiais inusitados. Se fosse para comprar um corta-isopor e uma guilhotina de um metro já valia mais a pena comprar também o objeto artesanal pronto e milimetricamente adequado.

Meu tipo de receita vem naqueles áudios de 40 segundos com quantidades determinadas por expressões como “você preenche o fundo da panela com cubos de maçã”, “completa com o leite”, “coloca um tanto de limão” e “põe uma ponta de colher da manteiga”. É com essas que você aprende a cozinhar, porque é preciso se envolver com elas. É nessas medidas relativas que nascem as receitas de família, geralmente sustentadas pelo tamanho da cebolinha picada — as da minha avó deixaram um legado— e na memória do quintal que se senta para comer.

O pai do Gui avisa em qual etapa e a qual temperatura estamos no processo.

Leva um tempo até você se entender com esse tipo de receita pautada em uma certa intimidade com a comida. Uma vez, quando tinha acabado de me instalar na minha casa em Bauru, tentei uma de pretzel que dizia: adicione farinha até a massa soltar da mão. Eu fui pondo até livrar minhas palmas do grude. Quando terminaram de assar, podiam bem matar uma pessoa apedrejada. Nem a mandíbula de um cão podia com eles.

Há questões como a agressividade do seu forno, a generosidade das suas colheradas, o frescor e a marca de cada um dos ingredientes. Eu só gosto mesmo de cozinhar quando o processo acaba vindo bem a calhar, porque me sinto caprichosa esculpindo o formato das abobrinhas, curto a paciência de esperar o leite cortar e dou uma de bruxa com a alquimia das consistências, cores, cheiros.

Abobrinhas esculpidas, mini cebolas, proteína de soja e refogadão.

De abril a junho, tudo se resumia a três preocupações: 1) preparar refeições para além do café da manhã; 2) cozinhar os grãos por inteiro; 3) combinar as misturas vegetarianas com guarnições que fizessem sentido. Meu receio com a panela de pressão nunca foi completamente superado e já se vão 9 anos tentando a sério. No mais, consegui criar algumas recomendações próprias.

  • Todo prato deve considerar algo de cremoso com algo de crocante. O que for mais salgado vem com o que consome muita água enquanto é cozido. Se for ácido, traga o adocicado. E lemon pepper na pipoca.
  • Estoure pipoca na panela de pressão — daquelas tradicionais — com uma tampa de panela comum — não vá fechar com pressão!! Essas panelas são mais grossas e fundas. Significa que é mais difícil de queimar embaixo enquanto explode cada grão (e cabe muito mais).
  • Grão de bico, depois de hidratado e cozido, você vai querer encontrar disponível na geladeira. Ele vira estrogonofe, maçaroca (um hambúrguer que abriu mão do formato), almôndega vegana (seria mentira dizer falafel) e snack.
  • Cebola funciona com tudo. Compre roxas, brancas, grandes, desidratadas, em pó — aquelas pequenas para conserva você assa com abóbora cabotian, azeite e sal. Essa recomendação é um prato dos melhores.
  • A dupla ervilha-e-panela-de-pressão. Primeiro, compre uma panela nova, moderna, com válvulas e travas dignas de 2020. Confie na ciência, na tecnologia, na sua mãe e na Tramontina. Depois, sem precisar colocar de molho, coloque a ervilha, cebola em pó, água e sal. Você pode esperar formar a espuma para tirar com uma colher e só depois fechar a panela. Em 8 minutos, será uma sopa com nutrientes e sem gases.
  • Feijão branco vai no grupo dos que merecem dormir na água e cozinhar na panela de pressão, assim como demais feijões, soja, grão de bico. A recomendação aqui é molho de tomate. Essa eu não inventei, mas me apropriei muito bem.
  • Shakshuka, já ouviu falar? Nós compramos uma por dezenas de reais em um restaurante de brunch bem orgânico-etc muitos meses atrás. Quem tem tempero sírio, canela e curry já se pode dizer bem adulto. Você adiciona todos eles e o que mais fizer parte dessa família de aromas a um molho de tomate — não vou nem mencionar a cebola. Quando estiver fervendo bem, quebre dois ovos para cozinhar no molho. Se a panela for dessas que mantém o calor, pode desligar o fogo. Pão, cream cheese e café coado.
  • O dilema da berinjela. Acho que é no Amor nos Tempos do Cólera que uma personagem não sabe se ama ou detesta berinjela. Eu teria vários motivos para gostar e já comi gostando, mas eu não posso me dar conta da berinjela em si. Ela precisa ser fantasiada, escondida. Vieram duas pequenas na cesta de orgânicos. Usei sal para tirar o amargo delas, cortei rodelas fininhas, mergulhei em temperos hidratados e empanei com aveia. Ao saírem do forno, pareciam acompanhantes de cerveja.
  • Sobre abacate. Eu não tenho uma receita de guacamole que mereça aparecer aqui, mas devo dizer que o abacate precisa ser explorado para além disso. Em saladas, fatiado no prato de comida, com queijo padrão. Pense o abacate como a nova banana da terra — só que cru.
  • Tapioca Da Terrinha. Não quero enganar ninguém, tô falando de tapioca industrial, de pacote, vendida no supermercado em São Paulo. Vou mencionar essa recomendação porque já vi muito amigo cometendo esse erro. Não deixe para rechear depois. O recheio deve ser aquecido quase junto com a farinha, porque ele ajuda a deixar a coisa toda mais quentinha e úmida por dentro versus o crocante de fora. Não use frigideira fina demais porque torra e fica duro.
  • Batata doce com alecrim. Cortada de qualquer forma, cozida na água e depois espalhada em uma fôrma com azeite, sal, alecrim. É rústica, é gourmet, é fit, é chic e acompanha noites de vinho e de cerveja.
Abobrinha sem receita e com vinho
  • Brócolis, espinafre e congelados. Eu sei, eles provavelmente entrariam no grupo de miojos, enlatados e comidas de microondas. Mas, entre uma reunião e outra aqui, com uma panela a vapor, azeite e sal, eu continuo disposta a ostentar a reputação dos congelados da daucy.
  • Quinoa e lentilha. Cozinham quase tão rápido quanto arroz e têm bem menos açúcar. Depois de oito meses sem uma rotina de exercícios respeitável, isso importa.
  • Armazém cerealista. Encontrem um e comprem temperos a granel. Peçam ervilha wasabi, banana chips apimentada, castanhas e muuuitos grãos. Isso ajuda a diversificar sem ter que zanzar pela feira.

Oito meses depois, eu levantaria outras três preocupações. 1) o problema é que não dá tempo; 2) estamos todos enjoados das minhas comidas; 3) vida doméstica vai além da cozinha. Minha terapeuta diria: é, vamos vendo aí como vai sendo isso.

A minissérie de A Vida Doméstica dos Adultos me veio em 3 partes:

  • Receitas de cabeça
  • Toque e estoque (em breve)
  • Endereços temporários (em breve)

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