She’s got a ticket to ride

Dri Kimura
Comprar as flores ela mesma
3 min readJul 25, 2017

E a literatura é um tipo de sonho vivo em meio a uma morte de costume: a de não escolher

A primeira vez que eu vi uma pessoa morta foi no enterro do tio da minha mãe. Eu devia ter nove ou dez anos e não pareceu que a cena me fosse desencadear qualquer impacto. Eu já o havia visto inúmeras vezes, vivo. Então, fiquei sabendo que ele tinha câncer porque fumava muito. Depois, ele deixou de comer — sempre entendi o lado das pessoas que ficavam sem apetite — e ficou muito magro, até morrer.

Não foi o fato de ele ter morrido, nem a visão dele no caixão, mesmo porque parecia que ele estava dormindo e achei bonito que completaram tudo em flores, até ficar só o rosto dele para fora. Foi perceber que as pessoas passavam de vivas para mortas que ficou reverberando na minha cabeça. No mesmo período, houve um surto de dengue — acho que o primeiro de que me lembro — e eu me convenci de que tinha febre, dores, manchas pelo corpo. E que eu também iria parar de comer e morrer de magra.

Sempre entendi a doença como o que te impede de fazer aquilo de que precisa para viver. A doença tira o apetite, para que a pessoa não possa mais comer. Se a pessoa come, a doença faz vomitar. Eu ainda não sabia que havia outros tipos de doenças que não matavam de magreza, mas de tristeza, ou de alguma dor que doesse o suficiente.

Eu também não sabia que há mortes que não matam, mas apenas impedem de viver. E que a doença pode ser um jeito de viver com urgência, só pelas importâncias reais — quando se descobre que já não trazem conforto quaisquer frivolidades.

Sei que algumas pessoas ajudam outras a viverem mais de verdade. Quando um adulto supervisiona uma criança, por exemplo, julgando que ela ainda não tenha a maturidade para enfrentar a existência da morte — e privando-a, portanto, da experiência de ir a um velório — ou quando alguns homens respondem por suas mulheres, para que elas não se arrisquem a errar o caminho. Mas, há mulheres que morrem de curiosidade sobre o equívoco e, também, são as crianças que cedo conhecem a morte as que se descobrem furtadas da vida.

E seguem as ignorâncias de tudo, com o perigo daqueles que permanecem sem aprender que a morte também é um pouco de organização para as memórias e elevação dos contextos — assim, como no sono; e talvez por isso o tio da minha mãe estivesse, ali, tão semelhante a quem simplesmente dorme e sonha como sobrevida. E essas mulheres, a maioria, sujeitas como ficam a não correr o risco de acertar para valer e de não saber como se deve agir em casos de decidir — em um estado permanente de doença, que conduz à imposição da resistência como forma de vida.

Já reparou que a resistência é sempre feminina?, foi o que me disseram.

Essa doença persistente que não mata, mas às vezes mata — e tem matado cada vez mais — mora na cabeça, do mesmo medo de não saber o que vem depois e de não conseguir tentar. Elas aprendem com cada persona que viveram para ajudar a chegar na outra ponta da vida. São as mães e esposas que não adoeceram o suficiente para morrerem de magras, mas que morrem cada dia vivido sem escolha sobre aquilo de que precisariam para viver. São as altruístas, as solteiras, as sem carreira.

São as que não encontram a restrição que compraram para si mesmas quando aceitaram que não dariam para nada muito extraordinário — porque grandioso era quem foi ajudado, seu motivo de viver. E sem poder explicar por que é tão difícil — de puta a devota, que dão no mesmo — dizer não.

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