Voltamos

Dri Kimura
Comprar as flores ela mesma
4 min readNov 11, 2020

Porque aqui já estava tudo. E a intenção é continuar.

Para cada um que me envia um áudio, dou ao menos uma semana de espera. Eu vejo a notificação — agora mesmo, há mais de 40 delas entre parênteses na minha aba. E, apesar de saber que muita gente teria um gatilho incontornável sobre a situação das notificações em si, eu não ligo. Sempre convivi com mais de 1000 e-mails não lidos, perfis em redes sociais abandonadas, documentos sem título do drive. Tem sido melhor assim, para todos nós. Vamos nos perdoando aos poucos pelo jeito de cada um ser.

Isso não quer dizer que eu não me preocupe em responder. Assim como para limpar a casa, a pendência fica ali me trazendo pequenos aborrecimentos nas sujeiras pelos cantos. Sem contar que eu amo passar o tempo conversando e muitas dessas mensagens que eu recebo são boas conversas em andamento. Eu só não sei lidar com a interrupção. Imagine ter parado de fazer o que quer que eu estivesse fazendo 42 vezes.

Então, em vez de ser interrompida, de tempos em tempos, eu faço, com muito gosto, algo pelas minhas notificações — e, principalmente, pelas boas conversas que tenho em andamento. Naquele domingo, foi escutar a mensagem da Rafa sobre como tem sido trabalhar só com outras duas pessoas virtuais, onde antes costumávamos ser ao menos 8 na mesma bancada, além de outras 6 pessoas que costumavam se revezar para vir do Rio.

Não foi bem uma conversa, ainda, porque agora eu é que estou recebendo a minha merecida semana de espera. Mas, ela me gravou um áudio em tópicos e comentários caprichosos, praticamente uma carta — que teria sido bem escrita, inclusive. Falou sobre a falta que faz não podermos almoçar juntas, as conversas que teriam preenchido as coincidências exclusivas dos corredores, elevadores e mesas compartilhadas, o quanto ela respeita o nosso material sobre narrativas e que gostaria de ler meu livro.

Escrevi Comprar as Flores Ela Mesma em 24 dias. Naturalmente, passei os 24 anos anteriores chegando a todas as outras motivações por trás dele. Quatro desses anos mais recentes teriam sido o período protagonista do romance de formação da minha vida. O tempo da faculdade, com o primeiro aluguel próprio, um relacionamento de louça compartilhada, o interior paulista — essas coisas são irresistíveis. Faltavam apenas: o pretexto temático, alguma referência teórica e um deadline.

Passei pela ideia de fazer uma imensa reportagem de viagens por estrada — acho que isso teria sido tão mais interessante quanto impraticável diante do prazo e da maturidade de então. Quis escrever sobre o impacto da gravidez como tema na vida de diversas mulheres e logo percebi que eu não tinha a reputação do Caco Barcellos, vivência suficiente e nada de Coutinho para lidar com as entrevistas. Acabei escolhendo o que não teria como ser um erro para mim e determinei que as entrevistas fossem sobre a própria escrita.

Flores ela mesma.

Foram alguns meses colecionando trechos, tentando agendar conversas com escritoras mais ou menos conhecidas e mais ou menos publicadas. Persegui a Eliane Brum em um evento de lançamento, liguei para a Carol Bensimon lá em Mendocino, li diversos contos eróticos da Seane Melo e dormi 4 horas por noite por todo o mês de janeiro. Protocolei o conteúdo, combinei o projeto gráfico, imprimi e defendi. Um ano depois, ainda investi um dos meus primeiros salários de assessora de imprensa, inteiro, na impressão pelo edital da Editora Letramento.

Se ficam sabendo do livro, muitos conhecidos pedem para comprar, dizem que vão ler. Alguns amigos leem e gostam. Meu namorado leu na véspera do primeiro Natal depois de nos conhecermos e inaugurou as estrelas de Comprar as Flores Ela Mesma no Good Reads. Desde então, ele faz questão de equilibrar a quantidade de homens com autoras mulheres na estante de livros. Uma amiga jornalista me entrevistou sobre meu processo de escrita, algumas pessoas compartilharam posts e já vendi exemplares em conversa de bar. Corre tudo bem com o livro, portanto.

Mesmo assim, eu digo que ainda não é para valer. Que o Trabalho de Conclusão de Curso não conta, que é preciso lançar um canal de resenhas, uma publicação sobre branding ou um livro de entrevistas com empreendedoras e artistas renomadas. Algo com intenções bem definidas, editorias e periodicidade. Um trabalho pago, um reconhecimento de alguém acima de mim.

Como logo antes de escrever Comprar as Flores Ela Mesma, desenhei em post-its, ensaiei tópicos, temas, esquemas, planilhas, métodos e processos, tentei todo tipo de gestão de projetos. Aqueci os motores o bastante para fundir a coisa toda, mas fui abandonando a escrita.

Na busca pelo tema, encontrei só o pretexto de nunca me dar o prazo. E, porque percebi isso, agora voltamos. Voltamos à escrita pela escrita, ao que chamam desacontecimentos e vivências poéticas, crônicas, ralé da literatura… Voltamos aos assuntos do que se vê pela janela, do efeito devastador das caminhadas, da luz quando bate de uma certa maneira.

Nós costumávamos achar graça de quem dizia que queria ser colunista já no primeiro ano da faculdade. Todos nós queríamos. Um espaço nos jornais em que os leitores esperassem sempre encontrar textos assinados por nós, simplesmente dando o nosso parecer. É que, apesar do prestígio ser desejável, esse lugar só poderia ser construído depois de muitos anos entre os contatos certos, fazendo-se um trabalho muito consistente como jornalistas que acabamos não nos tornando.

Voltamos por uma coluna despretensiosa, apenas para que essas conversas estejam disponíveis. Quem for ler, que leia no seu tempo. Estaremos aqui, eu com algumas palavras sem notificação.

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