Janaína Overdrive: transciborgue luta por sobrevivência em obra cyberpunk brasileira

Daniele Cavalcante
c/textos
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4 min readFeb 6, 2019

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Já faz algum tempo que eu procurava assistir “Janaína Overdrive”, um curta nacional de 2016 que tem sido exibido em mostras de cinema, sem nenhuma cópia digital. Em dezembro de 2018 o filme foi incluído no site do Scapcine Festival, e finalmente podemos conferir a obra.

À primeira vista, Janaína Overdrive pode ser definido como uma ficção científica nacional que discute os problemas sociais do nosso país. Mas o filme de Mozart Freire é mais do que isso: coloca o Ceará no mapa da subcultura cyberpunk e é pioneiro em protagonizar uma heroína trans.

O curta foi produzido como trabalho de conclusão do curso de Realização Audiovisual da Vila das Artes, e se alicerça bem nas raízes do cyberpunk para cuspir na tela a luta travada pelas classes marginalizadas por sobrevivência ante a dominação das classes dominantes, aqui representadas por uma grande corporação.

Janaína, interpretada pela atriz transsexual Layla Kayã Sah, é uma ciborgue trans com funções sexuais que descobre os planos da Corporação de substitui-la por novas modelos hi-tech. Para não ser eliminada — ou reciclada — ela procura na periferia de Fortalthec meios de acessar um terminal pirata, com o objetivo de fazer o upload de sua mente para o ciberespaço.

Não é difícil reconhecer o uso dos conceitos popularizados por autores como Bruce Sterling e William Gibson nos anos 80. Freire cria um universo distópico no qual as tecnologias mais avançadas de pouco serviram para resolver os problemas sociais — pelo contrário, as corporações donas de tais tecnologias as utilizam para impor ainda mais seu controle.

Janaína protagoniza essa luta pela sobrevivência na selva de silício e representa não só as trabalhadoras sexuais, como também minorias marginalizadas — mais precisamente as trans e travestis — cujos corpos são reduzidos a mero objeto a ser explorado para a prostituição, ou mesmo para o trabalho análogo à escravidão, em uma leitura mais ampla.

Enquanto profissional do sexo, Janaína luta contra padrões, exigências, tendências impostas pelos “donos” do seu negócio. Não querem apenas lançar modelos novos, mas também substituir Janaína. Ela, assim como todos os corpos subalternos, é descartável.

No entanto, mesmo que esteja debaixo do controle imposto por uma empresa poderosa, Janaína também luta por sua autonomia. “Quem manda no meu cu sou eu”, decreta.

Janaína não é apenas uma máquina a serviço de um sistema capitalista. Ela é parte humana. Sua guerra também é para que sua humanidade seja validada. Não é coincidência que seja a mesma luta da população trans e das putas.

Curiosamente, não podemos dizer o mesmo sobre os agentes assassinos da corporação. São frios, mais robóticos que os próprios ciborgues, transmitindo a impressão de serem simples máquinas, ou de que há muito perderam a humanidade. Nem sabemos o que são, tampouco Janaína sabe.

Freire escolheu o cyberpunk porque esse é um gênero da ficção que se preocupa mais com as relações entre homem e máquina, o real e o virtual, e a desfragmentação das instituições. Isso lhe permitiu criar uma narrativa que desconstrói a ideia heteronormativa de gênero, como relata Lidia Zuim em seu artigo.

“Eu acredito que filmes são, em geral, sexistas e heteronormativos, então eu quis desconstruir isso usando o imaginário cyberpunk”, diz Freire.

Ele afirmou que essa “é uma questão abordada atemporalmente, mas questiona o tempo presente e mostra novas possibilidades de sexualidade e protagonismo no cinema. Outros corpos possíveis”.

Apesar de usar estética e linguagem influenciada por obras estrangeiras como Neuromancer e Matrix, Freire não cai na armadilha de ambientar a narrativa em lugares fora da realidade brasileira. Ele consegue com habilidade imaginar a cidade de Fortaleza em um futuro alternativo hi-tech, sem abrir mão da realidade local.

Logo no início do filme, há uma espécie de rave, com uma banda tocando ao fundo, fazendo referência a uma conhecida festa gótica fortalezense chamada Dança das Sombras. Em outro momento, a heroína passa por ciborgues deitados em redes. São exemplos de escolhas muito acertadas dos elementos da cultura local que dialogam bem com o imaginário cyberpunk. “Coisa do Ceará”, resume Freire.

Para a trilha sonora, Freire escolheu também bandas brasileiras — os projetos Intuición e Holocausto Cotidiano. “Eu acho que esses artistas traduzem muito da atmosfera cyberpunk do filme”, diz.

A obra de 19 minutos foi exibido em vários festivais ao redor do país e surpreendeu parte da crítica. Venceu o prêmio especial Olhar Universitário de Melhor Curta.

Assista Janaína Overdrive no Scapcine.

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Daniele Cavalcante
c/textos

Redatora de ciência e tecnologia no Canaltech, redatora freelancer e ghostwriter.