Por dentro das seitas: Reforma do pensamento — A Lista de Singer

Daniele Cavalcante
c/textos
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7 min readFeb 8, 2019

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Avaliar o perfil do líder de um grupo ou religião para saber se ele apresenta as características de um líder abusivo é apenas um dos passos para detectar se você está em um culto destrutivo.

Existem outros critérios que devemos analisar, pois há uma linha muito tênue entre uma seita abusiva e outras instituições pouco ou nada prejudiciais. Por isso, alguns pesquisadores sobre o tema decidiram criar suas próprias listas para ajudar as pessoas a descobrirem se estão sendo vítimas de abusos psicológicos dentro de seus grupos.

Persuasão coercitiva

Nos estudos sobre seitas e cultos abusivos é comum encontrar termos como “controle mental” e “lavagem cerebral”, que são muito associados a táticas severas implementadas por militares na metade do século XX para converter soldados e populações inteiras a determinadas doutrinas ideológicas.

Para fugir do senso comum, que associa esses termos a técnicas questionáveis, e para fugir de teorias de conspiração, alguns estudiosos preferem usar termos como “reforma do pensamento”, e “persuasão coercitiva”.

Esses pesquisadores dividem as táticas de reforma do pensamento em duas gerações: a primeira, que é a época de experimentos militares, com uso de drogas, força física e ameaças para quebrar a “vontade” da vítima e provocar uma mudança em seu sistema de crenças.

São os velhos conceitos de lavagem cerebral, que até podem levar alguém a fazer coisas contra sua vontade, mas não provocam exatamente uma mudança no pensamento e crenças de forma muito eficaz.

A segunda geração utiliza técnicas, digamos, mais sutis. Não há uso da força, ou drogas, e não causa dor física nem qualquer tipo de tortura. Trata-se de um condicionamento com reforços positivos, junto a uma série de iniciativas para fazer com que as vítimas tenham uma outra percepção de mundo e de si mesmas, sem notar que estão sendo manipulados.

Para reconhecer os cultos abusivos de forma mais eficaz, é preciso também fazer uma distinção entre a persuasão coercitiva e a persuasão amigável.

Uma persuasão amigável não utiliza de métodos invasivos e não cometem abusos psicológicos extremos para condicionar o comportamento de pessoas. Um vendedor pode usar técnicas de persuasão durante um bom tempo para tentar te convencer a comprar seus produtos. Um cristão pode pregar por algumas horas para te convencer da existência de um Deus. São persuasões “amigáveis”, que respeitam algum limite.

Uma persuasão coercitiva é um conjunto de ações violentas, ainda que não haja agressões físicas. É importante destacar, no entanto, que a persuasão coercitiva sempre virá disfarçada de amigável. É aí onde mora a dificuldade que muitas vítimas têm de identificar se estão ou não sob manipulação e controle de seus líderes.

Podemos definir a persuasão coercitiva resumidamente como “método para controlar por meio da aplicação gradual de forças psicológicas, provocando mudança comportamental através de ‘aprendizado’ ou da adoção de uma série de comportamentos para seguir determinada ideologia, de maneira subliminar, sem que a vítima perceba¹”.

O objetivo é trazer para os líderes que utilizam esse tipo programa algum ganho, geralmente financeiro ou político. Alguns podem simplesmente ter a vontade de controlar pessoas para realizarem seus desejos.

Se prestarmos bem atenção nesses critérios, podemos perceber que as seitas abusivas podem atuar das formas mais sutis, como grupos de esquema de pirâmide, grupos de ajuda para dependentes químicos e alcoólicos e, o mais comum, grupos religiosos e esotéricos.

Mas atenção, o importante é se ater às características e formas de atuar, e não ao tipo de grupo. Não importa se você está em uma religião estranha ou um esquema de vendas suspeito. O importante é identificar se o líder usa de persuasão amigável ou coercitiva.

A lista de Singer

Alguns psicólogos e psicanalistas dedicados a estudar as seitas e cultos destrutivos criaram listas de características para identificar um líder que usa persuasão coercitiva.

Entre esses estudiosos está Margaret Thaler Singer, uma psicóloga clínica e pesquisadora proeminente no estudo da influência negativa que cultos destrutivos exercem. Em seu livro Cults in Our Midst: The Hidden Menace in Our Everyday Lives, escrito em co-autoria com Janja Lalich, ela enumera seis critérios essenciais para uma reforma efetiva do pensamento.

Abaixo, uma lista resumindo cada um desses critérios. Isso deve ajudar aqueles que tentam descobrir se estão em uma seita abusiva, ou se estão com suas autonomias comprometidas através de um “controle mental”.

  1. A pessoa não sabe que está sob um programa para alterá-la ou controlá-la. Ao contrário dos programas militares de lavagem cerebral pouco eficazes a longo prazo, a persuasão coerciva mantém os membros alheios ao processo ao qual são submetidos. Iniciantes são guiados passo a passo por um processo de mudança de atitudes e comportamentos sem ter consciência do propósito ou das características reais desse procedimento. Assim, as pessoas se comprometem com a seita ou culto sem saber que algo anormal está acontecendo; submetem-se à estrutura hierárquica e se colocam a serviço do líder. Este, por sua vez, faz parecer que tudo o que acontece é normal, e essa atmosfera de normalidade é reforçada pelos membros do grupo, que também moldam o comportamento de novos seguidores.
  2. Controle do tempo e do ambiente físico. Os líderes buscam controlar o contexto social da vítima e seu ambiente físico, com uma atenção especial no controle do tempo. As pessoas são encorajados a se manterem constantemente ocupadas. Os horários e deveres constantes são alternados, de modo que impeça os membros da seita a se integrarem totalmente nas relações com seu ambiente social. Com as novas tecnologias, essa tática ganhou ainda mais força, já que os líderes têm novas ferramentas para comunicação à distância. Assim, esse tipo de controle do tempo se torna mais rígido.
  3. Sensação de desamparo, medo e dependência. Com essa prática, a seita causa na vítima a perda de autonomia psicológica. Como já vimos anteriormente, o grupo busca isolar novos membros de seus meios sociais, técnica conhecida como Milieu Control, fazendo com que as pessoas só possam manter contato com membros da seita. Isso faz com que se tornem dependentes da seita/culto, principalmente quando a comunidade se localiza em algum lugar remoto. Cada membro serve como um modelo de atitudes e comportamentos para os demais, e uma linguagem própria e exclusiva é usada. Nesses casos mais extremos, a pessoa que se mudou para a comunidade deixa seu emprego e fonte de renda, e alguns doam suas posses para o grupo. Nesse processo, a confiança interior da pessoa se enfraquece, ela adquire uma nova visão do mundo, e passa a acreditar que sua vida anterior era totalmente errada.
  4. Suprimir antigos comportamentos e atitudes. Se a vítima é convencida de que viveu de forma errada até então, ela será levada a um processo de “desintoxicação” da vida anterior. Todo e qualquer comportamento associado à identidade social da pessoa é inibido. Estados de transe induzidos podem ser empregados, como a fala monótona e rítmica, cânticos, leituras intermináveis ​​ou longas sessões de oração ou meditação. Uma nova identidade social é lentamente adotada e o passado da vítima é reformado para ser considerado irrelevante ou prejudicial. É preciso um “arrependimento”, ou seja, uma nova forma de viver, contrária à vida anterior.
  5. Novos comportamentos e atitudes. Um sistema de recompensas, punições e experiências é aplicado para que a doutrina ideológica do grupo seja ensinada e internalizada. Se alguém questiona o ensino, o grupo fará com que essa pessoa sinta que há algo intrinsecamente maligno no questionamento. Isso pode fazer com que a pessoa seja isolada ou até expulsa. O modo de vida é muitas vezes complicado, cheio de paradoxos e contradições, exigindo sacrifícios para aprender e praticar.
  6. Um sistema lógico fechado. É estabelecido um sistema de pensamento lógico-simbólico e uma estrutura autoritária que não permite modificações, exceto por determinação do líder. O grupo terá uma organização hierárquica e piramidal, mesmo que isso não seja muito explícito. Às vezes, cargos para os mais experientes dão forma a uma hierarquia disfarçada de relações horizontais. Mesmo que o grupo diga que está aberto a críticas, qualquer um que criticar será considerado como uma pessoa falha. O grupo em si nunca estará errado, nem as regras, crenças, normas, símbolos e valores que fundamentam o seu funcionamento.

A reforma do pensamento é uma das práticas mais nocivas de uma seita ou culto destrutivo, pois trata-se de abuso psicológico. As vítimas perdem autonomia, seus comportamentos são manipulados e suas crenças moldadas sem que percebam a violência com que isso é feito.

Em casos mais graves, perdem identidade, para incorporar a identidade coletiva do grupo moldada pelo líder, e perdem também a capacidade de tomarem decisões por conta própria, pois tornam-se altamente dependente de aprovação da liderança para qualquer ação individual. O sistema de punições da seita faz com que as vítimas tenham medo de falhar, e esse medo pode acabar se transformando em uma fobia que a acompanhará mesmo após abandonar o culto.

Os efeitos não são permanentes, mas são difíceis de se reverter e exigem dedicação. Muitos ex-membros de seitas desmanteladas, cujos líderes são presos ou mortos, continuam até hoje acreditando nas doutrinas e ideologias moldadas em suas mentes através da persuasão coerciva.

Ainda que abandonem essas crenças e a fidelidade ao líder, as punições e humilhações que sofrem por “erros” cometidos dentro da seita podem permanecer por muito tempo na mente das vítimas após deixar o grupo.

Se você conhece alguém que teve uma mudança brusca de comportamento e crenças após o contato com um grupo que tenta isolá-la de seu convívio social e/ou familiar, pode ser que ela esteja sendo uma vítima de uma reforma de pensamento. Confira outros textos sobre seitas abusivas, que trazem um definição mais ampla sobre o assunto e descrevem outras características importantes, tais como o Círculo da Culpa e a dificuldade de se abandonar uma seita.

Os próximos textos darão continuidade às listas de critérios para distinguir grupos e líderes que praticam a persuasão coerciva em suas vítimas para obter benefício próprio.

¹Adaptado do documento apresentado à Suprema Corte norte-americana como estudo sobre sistemas psicológicos coercitivos no caso Wollersheim versus a Igreja de Cientologia 89–1367 e 89–1361.

Referência: Evidencias empíricas de manipulación y abuso psicológico en el proceso de adoctrinamiento y radicalización yihadista inducida

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Daniele Cavalcante
c/textos

Redatora de ciência e tecnologia no Canaltech, redatora freelancer e ghostwriter.