Por dentro das seitas: trabalho escravo e cárcere privado no Distrito Federal

Daniele Cavalcante
c/textos
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9 min readMar 14, 2019

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Uma das características de uma seita abusiva é a exploração do trabalho dos membros sem a devida remuneração ou direitos trabalhistas. Ou seja, as vítimas são coagidas a trabalhar de graça, sob a justificativa de que assim estão contribuindo com a manutenção da comunidade em questão.

Quando as vítimas são levadas a morar em uma comunidade afastada da cidade, há muito mais chances de serem submetidas a condição análoga à escravidão. Algumas seitas dirão que o trabalho é recompensado com moradia e alimentação mas, pela legislação brasileira, a prática é ilegal.

Por exemplo, em casos onde a moradia é oferecida em troca de trabalho, o valor do aluguel descontado do salário não pode ultrapassar 25% do valor recebido pelo empregado.

Ainda assim, essa prática tem acontecido no Brasil em seitas como Jesus, a Verdade Que Marca e a Igreja Adventista Remanescente de Laodiceia (que não tem ligações oficiais com a Igreja Adventista do Sétimo Dia). Ambas as comunidades foram alvos de investigação no Brasil nos últimos anos.

No último dia 7, o Ministério Público Federal divulgou nota sobre a operação na sede da Adventista Remanescente de Laodiceia, no Gama, Distrito Federal. A líder da seita, Ana Vindoura Dias Luz, de 64 anos, conduziu um esquema que manteve cerca de 200 a 300 fiéis em uma chácara para trabalhar sem salário.

Chácara Folhas de Palmeiras, local alvo de operação do MPF

A operação interditou os alojamentos precários utilizados pelos fiéis. De acordo com o comunicado “alguns moradores dormiam em ônibus, ou caminhões mal adaptados, sujos e que expunham os indivíduos a questões básicas de segurança”.

“Um dos alojamentos, por exemplo, ficava ao lado do espaço em que eram armazenados produtos agrotóxicos. Nesse local, a separação dos ambientes se dava por meio de uma parede improvisada de papelão, permitindo com que o cheiro dos pesticidas invadisse os dormitórios.”

Neste ambiente de trabalho insalubre, as vítimas eram submetidas a mobiliários inadequados, iluminação precária e cadeiras quebradas e sem encosto. O local onde se produzia 700 pães por dia, que eram vendidos na cidade pelos fiéis, precisou ser interditado devido a irregularidades nas instalações elétricas do espaço e nos equipamentos utilizados pelos trabalhadores.

Nos campos de hortaliças, os trabalhadores manipulavam agrotóxicos sem qualquer proteção individual ou treinamento sobre a aplicação dos produtos. As mercadorias eram apresentadas aos fregueses na cidade como orgânicas.

Além de não receberem pagamento, os fiéis precisavam pagar R$10 por dia à liderança da seita pelo direito de morarem na comunidade. As roupas e a comida também precisavam ser compradas lá dentro.

Exploração de trabalho em Mato Grosso

As denúncias contra a “Igreja Adventista Remanescente de Laodiceia”, que atuava antes em Mato Grosso e Goiás, começaram a chegar nos órgãos públicos em 2015, mas as investigações não prosseguiram por falta de provas. As vítimas temiam represálias por parte da líder, Ana Vindoura, e se silenciaram.

Em 2015, a seita foi processada pelo Ministério Público do Trabalho de Mato Grosso (MPT-MT) por usar voluntários para diversos trabalhos sem remuneração ou vínculo empregatício, incluindo a venda de livros religiosos.

Líder Ana Vindoura Dias Luz ministra culto na Igreja Adventista Remanescentes de Laodiceia

Os membros também produziam roupas de cama e pedras de amolar, e vendiam de porta em porta. A seita ensinava a seus fiéis que eles deviam viver em uma comunidade afastada dos costumes do mundo e, para se manterem, receberiam 50% dos recursos que conseguissem com a venda dos produtos.

A 1ª Turma do Tribunal entendeu que a venda das publicações religiosas estava relacionada diretamente a questões de fé, descartando assim o vínculo empregatício. A única medida foi proibir que crianças e adolescentes de até 14 anos participassem dessas práticas.

Cárcere privado

Após receber multas no caso de Mato Grosso, a seita foi para Brasília, onde atua até hoje na chácara “Folhas de Palmeiras”, localizada no Km 13 da DF-290, no Gama. Ali, começaram a construir uma igreja.

O caso, até então parado por falta de provas, ganhou novos rumos no final de 2018. Uma jovem mantida pela líder da seita em cárcere privado foi liberta pela Polícia Civil do DF.

Chácara Folhas de Palmeiras, local alvo de ação do MPF

Segundo Vander Braga, delegado responsável pelo resgate, a vítima de 18 anos era mantida no cativeiro por Ana Vindoura sob a justificativa de que a jovem “estava endemoniada”.

“A casa era fechada pela líder espiritual, e tinha grades nas janelas. Ela dizia que a menina estava endemoniada, e que precisava estudar a Bíblia.”

Braga relatou que a menina “foi bastante sucinta ao dizer que não sofreu nenhum abuso sexual”. Porém, era obrigada a prestar todos os serviços na casa onde morava e não podia sair do local em nenhum momento. “Quando ela não tinha o que fazer, tinha que ficar lendo a Bíblia, estudando a Bíblia, porque foi imposto na cabeça dela que ela estava com o demônio no corpo”, afirmou.

A vítima queria ir para a casa do pai, que mora no Nordeste, mas os membros da seita não permitiram, afirmando que “ela tava endemoniada e que não poderia, não deixavam de forma nenhuma”.

Ela conseguiu pedir ajuda a ex-membros da seita através do celular da líder, enquanto a mulher dormia. Após enviar as mensagens de texto, a jovem fugiu. Fiéis “foram até a casa dela, a encontraram escondida no mato e levaram de volta”, quando a polícia chegou e deu a voz de prisão em flagrante.

Ana Vindoura foi conduzida para audiência de custódia e liberada no dia seguinte pela Justiça. Ela afirma que a jovem vivia na comunidade desde os 5 anos e a chamava de “mãe”.

Alguns moradores do local defendem as ações de Ana Vindoura. Para eles, a igreja “lida com muitos problemas espirituais de jovens” e dizem que “isso é um conflito religioso”, não cabendo à Justiça interferir.

Além da jovem resgatada, outras duas garotas foram encontradas vivendo em cárcere privado na Chácara Folhas de Palmeiras, na mesma época.

“Minha irmã morreu de tanto trabalhar”

Com a prisão temporária de Ana Vindoura e a divulgação do cárcere privado na mídia, outras vítimas se sentiram encorajadas a denunciar e novos casos vieram à tona.

Em meados de janeiro deste ano, um morador do Mato Grosso procurou a Polícia Civil do Distrito Federal para esclarecer a morte da irmã, de 49 anos, que fazia parte da seita.

Igreja em construção na Chácara Folhas de Palmeiras

Dione dos Santos Almeida Holanda morreu em dezembro, após viver 10 anos prestando serviços na comunidade. A fiel, na época com 39 anos, conheceu a seita no município de Cláudia, no interior do Mato Grosso.

Segundo o irmão, Dione “abandonou tudo” em 2008 para se dedicar ao trabalho na seita. Mudou-se com a comunidade para Goiás e, há dois anos, para Brasília, onde faleceu no final de 2018.

“Minha irmã trabalhava demais, direto, dia e noite costurando roupas lá dentro. Amolecia as mãos de tanto costurar.

Não dá pra entender, parece que era lavagem cerebral. Abandonou tudo, vendeu e foi embora, morreu de trabalhar para eles.

Ele ainda relata que se os membros da seita tentassem falar ao telefone, apanhavam. “Nesse tempo, só consegui falar com minha irmã uma vez”, conta.

Testemunhas e ex-membros também disseram que o uso e a posse de celulares é proibida no local. Apenas a líder possui um aparelho ativo.

A mãe de Dione conseguiu passar quatro dias convivendo com a filha na comunidade, mas ela “era vigiada o tempo todo”.

O irmão foi impedido de ir ao sepultamento, que ocorreu em dezembro. Ele tentou levar o corpo da irmã para ser sepultado no Mato Grosso, mas o traslado também foi negado. “Diziam que eu era o demônio”, afirmou.

Sem informações sobre as causas da morte de Dione, a família procurou a Polícia Civil, com a suspeita de que ela tenha passado mal e morrido sem atendimento médico, já que o uso de remédios de farmácia é proibido na seita.

Outras denúncias

Outras vítimas quebraram o silêncio após os casos divulgados. Em e-mail enviado ao Jornal de Brasília, uma mulher afirmou que seu filho foi mantido sob condições de trabalho escravo pela líder Ana Vindoura.

Segundo o relato, os membros faziam o filho vender materiais da igreja sem qualquer remuneração. Além do menino, o filho de sua nora foi vítima da mesma situação e, por conta de um acidente de trabalho sofrido no local, tornou-se deficiente.

“Após uma queda do carro em serviço escravo, com apenas 15 anos ele não pode mais ter uma vida normal. Queremos justiça”

Um homem relatou que sua filha também foi uma das vítimas, passando seis anos na seita até conseguir escapar. Segundo este relato, uma mulher chamada Ivone, que gerencia o dinheiro da seita, se identifica como policial civil e seria “a defesa, porque diz que fez Direito, então interpela qualquer atividade policial contra o grupo”.

Ivone é acusada de ameaçar aqueles que tentam denunciar os abusos. “Como pseudo-autoridade policial, ela acaba introduzindo medo em algumas pessoas”.

“Existe uma partilha financeira dentro do grupo: as pessoas vão para rua, trabalham, levam o dinheiro; e ela [Ana Vindoura] coloca a mão no dinheiro. Essa renda é distribuída entre algumas pessoas lá de dentro.

Eles costumam pegar pessoas pobres e acabam induzindo as mães e os pais a deixarem as crianças saírem pelo mundo com o trabalho missionário. É aí que acontecem as maiores atrocidades.

Alguns se aproveitam das meninas e acaba ocorrendo a conjunção carnal, ou na verdade os estupros. Já houve muitas situações iguais a esta, mas nenhuma vítima que conheci tem coragem de abrir a boca, por vergonha”.

Há quatro anos, este pai fez uma denúncia na delegacia de Corumbá, quando a comunidade ainda residia em Goiás. Conta que “eles destruíram famílias, induziram pessoas a venderem suas casas para dedicar todo dinheiro à seita e, depois, pregavam um pé na bunda. Não foram poucas pessoas, foram várias. Uma senhora perdeu uma chácara, outra pessoa perdeu uma casa, acabou o casamento, são muitos casos”.

Caso em andamento

O MPF informou que os empregadores que submeteram as pessoas em regime de escravidão “serão notificados a rescindir os contratos de trabalho, formalizar retroativamente os vínculos trabalhistas e a quitar as verbas salariais e rescisórias dos empregados”.

Chácara Folhas de Palmeiras, local alvo de operação do MPF

Os auditores-fiscais do trabalho determinaram que será realizada rescisão indireta dos contratos de trabalho e, com isso, os trabalhadores terão direito a receber três parcelas do benefício de seguro-desemprego especial de trabalhador resgatado.

Também serão tomadas medidas judiciais para “garantir o cumprimento efetivo dos direitos trabalhistas sonegados e a observância das normas de saúde e segurança do trabalho violadas”.

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Daniele Cavalcante
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Redatora de ciência e tecnologia no Canaltech, redatora freelancer e ghostwriter.