Trabalho e Ócio — o mito da meritocracia e a punição da vadiagem

Daniele Cavalcante
c/textos
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9 min readJan 29, 2019

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O mito da vadiagem como um mal a ser combatido é uma antiga arma usada contra os trabalhadores na luta de classes. Para a classe dominante, o discurso é valioso, pois lugar de pobre é na produção.

Essa narrativa cria uma falsa dicotomia entre o trabalhador que “veste a camisa da empresa” e o “vagabundo”. Esses dois estereótipos compõe um quadro que oferece aos pobres apenas duas opções, dois caminhos a seguir, sendo que um levará fatalmente à tragédia. É um sofisma para subjugar a força de trabalho.

Aliado a esse discurso está a Igreja cristã que, sustentada por diversos textos bíblicos, condena a preguiça como pecado capital. Nesse contexto, a moral cristã e a moral capitalista são amantes.

Em muitas ocasiões a arte foi usada para que esses conceitos fizessem parte do senso comum.

Diligência e ociosidade (Industry and Idleness)

Quadro de número 8 da série “Industry and Idleness”, emuldurado.

Industry and Idleness, do inglês William Hogarth em 1747, é uma obra de grande importância artística. Embora não tenha sido um sucesso imediato, se tornou clássico. São 12 gravuras que, em conjunto, narram a vida de dois personagens, e podem ser vistas como uma história em quadrinhos bem sofisticada para a época.

A intenção era mostrar que trabalho árduo traz grandes recompensas e a única opção diferente disso é a “vadiagem”, que leva a uma vida de crimes e tragédias. Um “vagabundo” é um sujeito de índole duvidosa, que tem preguiça de trabalhar, não vai à missa, se prostitui. Um inútil que acaba no mundo do crime para, enfim, ser condenado pela lei.

A gente já conhece bem esses conceitos.

Industry and Idleness foi vendido por 1 xelim cada gravura, de modo que todo o conjunto custava 12 xelim. Em termos de poder de compra, pode-se assumir que essas impressões em preto e branco visavam um mercado amplo, ou seja, era bastante acessível para o público trabalhador.

Cada impressão mostra uma cena que representa um momento da vida de um dos dois protagonistas. Assim, você acompanha a saga de Francis Goodchild e Thomas Idle em seus caminhos opostos na escada social e política.

A história

Goodchild (nome que pode ser traduzido como “bom garoto”) é o trabalhador que não mede esforços para se dedicar ao patrão e na manutenção dos bons costumes. Na mais típica narrativa meritocrata, ele é recompensado com poder e estima na sociedade.

Idle (nome que pode ser traduzido como “ocioso”) segue o caminho do ócio, da imoralidade e do crime. Suas desgraças sociais são unicamente consequências de uma vida preguiçosa e viciada em “maus costumes”.

Perceba, nesta narrativa só existem duas opções: ou você se espelha em Goodchild, ou se torna um Idle.

Ou você é o esforçado que um dia receberá seu prêmio, ou é um vagabundo pecador que terminará em desgraça. Não há outra opção em narrativas como essa.

Para completar a panfletagem, cada figura também é acompanhada por textos baseados em algum trecho da Bíblia.

Confira abaixo algumas das gravuras. O conjunto completo está disponível na Wikipedia.

Quadro 1: Os colegas aprendizes em seus teares

Os dois protagonistas são apresentados: ambos “pré-adolescentes” em igualdade de condições como aprendizes e realizam o mesmo trabalho.

Apesar disso, eles já têm suas características estabelecidas. Francis está ocupado no trabalho com seu tear e com sua cópia do livro “The Prentice’s Guide” (O Guia do Aprendiz) a seus pés e vários textos colocados na parede atrás dele, como “The London Prentice” e “Whitington Ld Mayor”. Esses textos são como os artigos daquele blog sobre produtividade.

Tom Idle, por sua vez, se inclina, roncando em seu tear, provavelmente porque bebeu da enorme caneca chamada “Spittle Fields” que repousa no tear. Um gato, animal comumente relacionado à preguiça, está atrapalhando o trabalho. Sua cópia do “Prentice’s Guide” está jogada no chão.

O futuro de cada personagem já está decretado nas bordas desse painel: à esquerda, representando o futuro de Idle, um chicote, grilhões e uma corda; à direita, ao lado de Goodchild, um cetro cerimonial, espada e corrente dourada. A espada do mestre segue exatamente o eixo do cetro.

Abaixo, o texto bíblico sobre Tom é Provérbios 23:21.

Porque o beberrão e o comilão acabarão na pobreza; e a sonolência os faz vestir-se de trapos.

Para Goodchild, Provérbios 10:4:

O que trabalha com mão displicente empobrece, mas a mão dos diligentes enriquece.

Quadro 2: O aprendiz trabalhador realizando o dever de um cristão

A segunda gravura retrata a índole cristã de Goodchild. O cenário é uma igreja, durante um domingo, dia em que trabalhadores são liberados para comparecer à missa.

Goodchild está em um banco com a filha de seu mestre, cantando com a ajuda de um hinário. Em contraste, há um homem adormecido ao seu lado e uma mulher bem vaidosa à extrema direita. A cena é equilibrada com uma senhora, provavelmente a zeladora da igreja, bastante devota, sentada à esquerda.

Abaixo, o texto bíblico é o Salmo 119:97

Oh! quanto amo a tua lei! É a minha meditação em todo o dia.

Quadro 3: O aprendiz ocioso joga no pátio da igreja, durante o serviço divino

Enquanto isso, Tom Idle está jogando e fazendo apostas em cima de um túmulo da igreja. Como você já deve ter notado, as atividades dos dois personagens são colocadas como extremos opostos em uma escala moral.

Por seu comportamento profano, Tom Idle está prestes a receber uma paulada do funcionário da igreja, que por sua vez parece piscar para o leitor.

Um punhado de caveiras em primeiro plano complementa a composição.

O texto bíblico citado é Provérbios 19:29:

Os castigos estão preparados para os zombadores, e os açoites para as costas dos tolos.

Quadro 6: O aprendiz trabalhador de seu tempo e casado com a filha de seu mestre

Vamos pular alguns quadros e observar o avanço de Goodchild em sua caminhada bem-sucedida na corrida meritocrática. A gravura mostra que Francis Goodchild conseguiu sair da fase de seu aprendizado após cumprir suas tarefas no tempo determinado. Agora ele é livre e se tornou um tecelão de artífices.

A placa escrito “WEST e GOODCHILD” como marca registrada mostra que seu ex-mestre agora é seu parceiro, e a Srta. West, a filha do mestre vista no Quadro 2, se tornou a Sra. Goodchild. Na cena, eles distribuem os restos da festa de casamento para os pobres.

O texto bíblico é Provérbios 12:4:

A mulher virtuosa é a coroa do seu marido.

Gravura 7: O aprendiz ocioso retorna do mar, em um sótão com uma prostituta comum

Enquanto isso, Tom Idle, que na gravura 5 foi expulso pelo mestre e navegou para o mar, retorna.

Não se sabe o que aconteceu entre os dois eventos, mas ele, vagabundo que é, se tornou um ladrão e mora em uma espécie de sótão com “uma prostituta comum”, em total miséria.

Tom e a mulher estão em uma cama quebrada, conferindo alguns itens roubados. As garrafas na cornija da lareira sugerem doenças venéreas. Um gato cai na chaminé junto com alguns tijolos, o que faz com que Tom Idle se assuste, provavelmente por medo de ser preso.

O trecho bíblico é de Levítico 26:36:

O ruído de uma folha agitada os porá em fuga

Quadro 10: O trabalhador é vereador de Londres, o ocioso é levado à sua frente e impugnado por seu cúmplice

Este é o segundo e último quadro em que os dois personagens estão juntos. Enquanto no primeiro foi destacada a oposição dos comportamentos, aqui fica registrado onde o caminho de cada um os colocou: Goodchild é um vereador e Idle é colocado sob seu julgamento.

Novamente, Tom está à esquerda, Francis, à direita. O cúmplice de Idle está entregando um atestado admitindo culpa e se torna testemunha contra seu ex-parceiro.

À direita de Idle, sua mãe implora para um oficial, que a ignora.

Goodchild parece afastar o rosto, transtornado, aparentemente lutando com seus sentimentos enquanto rejeita as súplicas do antigo colega.

Texto bíblico para Idle é Salmos 9:16:

Os ímpios caem em suas próprias armadilhas

O texto para Goodchild é Levítico 19:15:

Não cometam injustiça num julgamento

Quadro 11: Idle Executado em Tyburn

Em um dos quadros mais elaborados da obra, Idle finalmente colhe os frutos de suas vagabundagens e crimes: a morte na forca.

Há um pregador com um livro chamado Wesley, que é o fundador da igreja Metodista. Ele discursa para Tom Idle, que está apoiado em seu próprio caixão (marcado pelas iniciais “T.I.”).

No fundo há uma multidão de espectadores. Alguém está enviando um pássaro que voará de volta para Newgate e dará a notícia de que o criminoso está morto. Nas bordas do quadro, as imagens mostram o destino final de Idle.

O verso completa o destino de Idle, com uma adaptação de Provérbios 1:27, 28.

Quando o medo vier como desolação, e a destruição vier como um redemoinho; quando distrações vierem sobre eles, eles invocarão a Deus, mas ele não responderá.

Quadro 12: O aprendiz trabalhador se torna prefeito de Londres

Por fim, Goodchild, o trabalhador, é recompensado por sua dedicação e moralidade: ele é escolhido para o cargo de prefeito da cidade de Londres.

Ele é mostrado na carruagem, segurando a espada do estado e usando uma cartola. Na sacada à direita, uma multidão observa, assim como as pessoas nas janelas.

No canto inferior direito, um garoto segura uma publicação chamada “Um relato completo e verdadeiro de sobre Tho Idle, que […]”. Significa que Thomas Idle agora está no The Newgate Calendar, um boletim mensal da época que registrava os criminosos executados.

As bordas do quadro estão cercadas por cornucópias, símbolo de fertilidade, riqueza e abundância. E a moral da história se completa com o verso de Provérbios 3:16.

Vida longa de dias está na sua mão direita; e na esquerda, riquezas e honra.

Contextualizando…

Doutrinações como esta, assim como os mitos meritocráticos dos dias de hoje, têm como objetivo convencer o trabalhador a se conformar com sua função de trabalhar e “aumentar a riqueza social e suas misérias individuais”, como escreveu LaFargue.

A moral capitalista, triste paródia da moral cristã, rodeia de anátemas a carne do trabalhador; seu ideal é reduzir o produtor ao minimo de necessidades, suprimir suas alegrias e paixões e condena-lo ao papel de máquina de gerar trabalho, sem trégua e sem piedade (Paul LaFargue, “O Direito à Preguiça”).

Durante o século XVIII, os corpos dos chamados pobres “ociosos” eram considerados por muitos autores de classe alta como grotescos, objetos de medo e repulsa, conforme escreve Sarah Jordan:

Se os corpos da classe trabalhadora não estivessem diligentemente empenhados em trabalhos que beneficiariam a “sociedade” (que geralmente significava as classes média e alta), ela era vista como repugnante, suja e incontida. Por outro lado, os atributos corporais considerados grotescos eram vistos como sinais de ociosidade e, portanto, de indignidade. (Sarah Jordan, From Grotesque Bodies to Useful Hands: Idleness, Industry, and the Laboring Class, 2001).

Assim, o “vagabundo” se tornou uma figura abjeta, que deveria ser descartada, sem direito a atenção social. Hoje, sem surpresa alguma, pessoas em condições precárias e minorias marginalizadas são facilmente identificadas com este estereótipo e, portanto, condenadas como “vadias”, um crime contra a sociedade que exige trabalho.

É muito comum que, nos dias de hoje, “não fazer nada” seja um bom argumento para indicar que determinado grupo de pessoas devem perder certos direitos, inclusive, o de liberdade e terra.

“Eles não fazem absolutamente nada. É uma realidade” — Jair Bolsonaro, sobre quilombolas em Eldorado paulista.

Quando falo em crime, não é uma metáfora ou exagero. No Brasil ainda está em vigor a “lei da vadiagem”, que leva muitos ao destino de Tom Idle. Em um próximo texto (já disponível) veremos como isso afeta profundamente as populações marginalizadas — ao mesmo tempo em que não existem Francis Goodchilds.

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Daniele Cavalcante
c/textos

Redatora de ciência e tecnologia no Canaltech, redatora freelancer e ghostwriter.