Ilustração do livro “A history of vagrants and vagrancy, and beggars and begging”, de 1887

A opressão da vadiagem

Daniele Cavalcante
c/textos
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5 min readFeb 1, 2019

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Embora os contextos que levam populações ao que se denomina vadiagem sejam distintos em países, culturas e épocas diferentes, a reação da classe dominante costuma ser a mesma: punir os que aderem a esse estilo de vida.

No capitalismo é necessário um excedente de mão de obra, para que os trabalhadores menos privilegiados aceitem condições cada vez mais precárias, garantindo assim maior lucro do patrão. Por isso, é interessante para o sistema que haja pessoas marginalizadas, pois essas são mais inclinadas a se submeterem a essas condições de trabalho.

Mas nem sempre isso acontece. Alguns preferem dar o seu “jeitinho” próprio de sobreviver. É aí que fica caracterizada a rebeldia contra a subsistência por meio do trabalho convencional. E isso é perigoso para a manutenção do capitalismo tal qual o conhecemos.

Aqueles que buscam a subsistência de outras formas — da mendicância à prostituição, da malandragem ao crime — são classificados como vadios. Ou, em uma linguagem mais atual, “vagabundos”.

Estigma de longa data

Nos antigos Egito e Grécia, a mendicância era criminalizada. A lei de Atenas, por exemplo, ditava que todo cidadão justificasse seus meios de subsistência. Os que não podiam fazê-lo, ou seja, aqueles que não trabalhavam, eram expulsos da cidade.

Vadiar sempre foi considerado pela classe dominantes como um ato de ameaça à ordem. Vadios eram considerados indivíduos perigosos, pelo simples fato de que não se sujeitavam à ordem natural da sociedade: trabalhar, produzir riqueza social, receber seu pagamento e, dele, tirar sua subsistência.

Há um histórico em diversas culturas de vadios que criaram seus próprios meios de sobrevivência, geralmente fora da lei. É nesse contexto que criou-se o estigma do preguiçoso como uma figura em contraste ao trabalhador honesto, esforçado e bem-sucedido.

Enquanto o vadio trapaceiro ganha a vida através de atos ilícitos, o trabalhador dedicado recebe as honras de um salário digno e reconhecimento.

Em narrativas como Industry and Idleness, sobre a qual vimos no texto anterior, os dois estereótipos são apresentados em papéis sociais bem opostos: o vadio se torna um criminoso que, no fim, é condenado à morte, enquanto o trabalhador dedicado e religioso faz sua trajetória de sucesso até se tornar prefeito da cidade.

Histórico no Brasil

Se quisermos entender melhor a atualidade, no entanto, é preciso notar que a construção e a criminalização do estigma do vadio no Brasil se deu de forma distinta de culturas pré-capitalistas e/ou europeias.

Com o fim da escravidão no Brasil, o país precisou lidar com um grande número de pessoas negras sem trabalho, e senhores que não tinham mais mão de obra escrava. Não havia como contratar e assalariar tanta gente trazida de outro continente — e nem a intenção de fazê-lo, já que a elite preferiu trazer mão de obra estrangeira, prática incentivada pelo governo para fomentar a colonização branca.

Deu-se aí o início de uma problemática que acabou por marginalizar pessoas negras e não-brancas, além de estrangeiros desempregados. Uma quantidade cada vez maior de pessoas sem salário, sem posses, sem terra, sem pão. Sem identidade.

O processo de marginalização dessas pessoas foi um forte fator para classificá-las como vadias. E, como vimos antes, vadios são perigosos para a ordem vigente. Representam uma ameaça pois não tiram o sustento da venda de sua força de trabalho à elite burguesa.

Além disso, um grupo organizado de pessoas marginalizadas coloca em risco a propriedade privada e os meios de produção. Daí a necessidade da força policial para reprimir qualquer atividade com fins revolucionários.

Os contínuos processos de privatização dos sistemas prisionais e a exploração da mão de obra de populações carcerárias também é um fator importante nessa matemática, mas isso é um assunto para outros artigos.

No Brasil, a criminalização à vadiagem foi prevista na lei pela primeira vez em 1830, no Código Criminal do Império, capítulo IV, art. 295:

Não tomar qualquer pessoa uma occupação honesta e util de que possa subsistir, depois de advertida pelo juiz de paz, não tendo renda sufficiente. Penas — de prisão com trabalho por oito a vinte e quatro dias.

Quando o Brasil virou República, as coisas complicaram ainda mais. Não só a pena aumentou, como também foi incluso a capoeira como uma atividade de vadios. Desnecessário dizer o motivo.

Em 1890, o Códio Penal Brasileiro, no Art. 402 dizia:

Fazer nas ruas e praças públicas exercícios de abilidade e destreza corporal conhecidos pela denominação de capoeiragem ; andar em correrias (…): Pena — Prisão celular por 2 a 6 meses.

Com o tempo, somou-se a esse estigma a figura do malandro. Também estava na lista de vadios qualquer pessoa que andasse pela rua e não pudesse provar que tinha um emprego regulamentado. Trabalhadores sexuais, travestis, mendigos e, mais recentemente, outras minorias vitimizadas pelo estado, foram alvos da força policial que encarcera os “vadios”.

A última legislação que tivemos nesse sentido foi a Lei das Contravenções Penais de 1941, artigo 59:

Entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover a própria subsistência mediante ocupação ilícita:

Pena — prisão simples, de 15 (quinze) dias a 3 (três) meses.

Claro, crimes eram tipificados como mais graves em comparação à vadiagem, que era apenas uma contravenção. Por isso, também é importante distinguir a vadiagem em dois conceitos: legal e social — sendo que este último também inclui o policial, uma vez que as autoridades usam dos estigmas sociais do vadio para vitimizar e encarcerar minorias.

Por ser um ilícito de mera conduta, no entanto, a vadiagem era usada como pretexto para levar à prisão antes mesmo que fosse provado outros atos criminosos, ou quando a tipificação criminosa era difícil de se provar.

Mas e hoje?

O projeto de lei que descriminaliza a vadiagem só foi aprovado em 2012. Mas isso não impediu que as minorias marginalizadas, em especial os negros, continuassem sofrendo com as consequências, já que o estigma social ainda rege — lembre-se, a força policial atua sob este estigma.

Grupos marginalizados foram e ainda são facilmente colocados na mira da força estatal, que recebe ordens de higienizar as cidades e encarcerar os potenciais “malandros”, “vadios”. Afinal, em uma sociedade capitalista que exige a produção de riqueza social a despeito da crescente pobreza do trabalhador, “quem não trabalha é vagabundo”.

Corpos dos chamados vadios são considerados grotescos e repulsivos. Não raro, são estigmatizados como vetores de doenças contagiosas. Também são objetos de medo, já que seriam potencialmente criminosos.

É importante entender que todo esse processo é uma consequência da luta de classes. Ações e políticas de inclusão social e de inclusão no mercado de trabalho voltadas a essas pessoas não devem ser alienadas da consciência de classe.

Não importa o quão progressista a sociedade se torne, ou o quanto as empresas e milionários falem em filantropia: enquanto houver capitalismo, continuará o processo que gera, marginaliza e encarcera os “vadios”.

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Daniele Cavalcante
c/textos

Redatora de ciência e tecnologia no Canaltech, redatora freelancer e ghostwriter.