Histórias da minha área

Lutas, conquistas e anseios. O compartilhamento de três histórias de cantores sobre a cena do rap na região norte de Porto Alegre.

Sthefany Canez
Comunicação Socioambiental
9 min readMay 10, 2023

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Uma das primeiras fotos do começo do grupo Alvo X-Crédito — Giliard da Luz Marques

Por Sthefany Canez
Colaboração: Augusto Edinger, Eduarda Heller, Érica Sena e Giliard da Luz Marques

Durante a vida inteira Anderson Luiz, Fabiano Marques e Gelson Campos não trabalharam só com a música e ganharam pouco reconhecimento material. Enquanto administraram a vida compondo canções e tocando, tiveram que ser referência para seus filhos, esposas e família, ademais, trabalhando em empregos que nunca tiveram a ver com a área da música.

Os anos passaram e o grupo “acabou” em 2018, fazendo com que seguissem caminhos solos, mas que de maneira nenhuma, poderiam apagar a história feita na música porto alegrense e principalmente nas comunidades. Os entrevistados ainda carregam consigo o nome do Alvo X e alguns até tatuados na pele, mostrando que as histórias da minha área que começaram por uma ideia de menino interferem em mim, você e todos que estão ao redor.

Diga com quem andas

“Pra vencer, tive que lutar dez vezes mais que o normal.” Em certas pessoas, isso não tem o mesmo impacto quanto dito por alguém que cresceu em meio a cena do RAP gaúcho da capital Porto Alegre. Esse é o caso de um dos entrevistados, Fabiano Marques de Lima, 41, mais conhecido como “Tutu”, um dos integrantes do Alvo X .

Nos anos 80 e 90, o rap e Porto Alegre passaram por uma grande revolução. Falar sobre o rap brasileiro naturalmente é relacionar com grandes metrópoles como São Paulo e Rio de Janeiro que vieram a tornar o meio musical conhecido. Além da música — ainda existiam os demais tipos de demonstração sobre a nova cultura que emergia dos Estados Unidos — grafite, dança de rua e “street style”. Outro participante do grupo pioneiro, Gelson Campos, 40, conhecido como “Fubu 470”, recorda que na época as pessoas eram julgadas pelas vestes, modo de pensar e falar.

Todavia, Porto Alegre estava fortemente inserida para o desenvolvimento dessa nova cultura na cena latinoamericana. Diversos grupos viam a oportunidade de divulgar seus trabalhos em outros estados para atingir mais pessoas e contatos dentro de uma cena nova no país, relata Anderson Luiz Silva da Silva, 41, conhecido como Chapa Halls. “Segundo ele,” “O Rio Grande do Sul já foi o segundo estado onde o rap era mais forte”.

Na zona norte da capital gaúcha, onde está localizado o bairro Mário Quintana, um grupo que iria se tornar referência tanto para os moradores quanto para colegas de profissão vinha a se firmar e começar sua trajetória com o objetivo de denunciar as violências e as histórias da área através do papel e da caneta.

Mário Quintana contada em prosas e versos

Dos barracos de madeira aos becos de difícil acesso
Dos campos de terra ao valão

Mirim, Fumaça um, Fumaça dois, Mutirão, Valneri, Safira, Batista Flores

O que nos une são diversos fatores, vontade de vencer acima de tudo

Coragem de enfrentar o mundo com muito respeito.

A Chácara da Fumaça é o pontapé inicial do grupo. No ano de 1996 quase 1997, o bairro ainda demoraria dois anos para ser oficializado pela lei municipal de Porto Alegre nº8258 e finalmente ganhar o nome do poeta homenageado. Entre os 37.234 habitantes da zona, um menino chamado Giliardi Da Luz Marques, conhecido na comunidade com o nome de “guerra” de “MC PRN”, criaria o grupo chamado Soldado Universal, posteriormente, conhecido como Alvo X, através de um sorteio feito na escola.

No começo era apenas Giliardi e Mano Gão, até que no final do ano de 1998 em paralelo tinha outro grupo surgindo, o “Filosofia do Rap”, que contava com um dos integrantes chamado Anderson Luiz Silva da Silva, mais conhecido como Chapa Halls. Os dois coletivos tocavam juntos colaborando entre si, porém não durou muito para o Filosofia do Rap acabar e em 1999 com a chegada do integrante Chapa se tornar o começo de um conjunto de sucesso.

Giliardi e Chapa Halls no Giesta Bar localizado no antigo Rei do Bailão na Assis Brasil em Porto Alegre — Crédito: Giliard da Luz Marques

O Rap veio para o Brasil com o objetivo de relatar o que se vive nas periferias urbanas, sendo defendido por jovens negros e de diferentes realidades, a do grupo não seria diferente com o meio em que o bairro apontava e certas situações desgastantes que eram vividas no dia a dia. “Nosso objetivo era denunciar tudo de errado que via no bairro: desde o saneamento básico, desde a violência policial, a falta de locomoção e canalizar a raiva”, desabafa Chapa Halls, além disso, com a falta de apoio da prefeitura, ainda conseguiam fazer alguns eventos para o público, poucas vezes sendo remunerados pelo serviço prestado e ainda em uma época onde o rap era ferozmente negado como estilo musical. “Só uma vez pagaram 600 reais pra mim e o Chapa Halls, mais cada um de nós ficou só com 100 reais. Como nós era de menor, um conhecido fez pra nós e ele achou que como ele fez, a maior parte era dele”, expressou o antigo músico conhecido como MC PRN.

No começo dos anos 2000, com a famosa virada do século, este não havia sido o único marco. Uma das músicas mais instigantes criada como forma de conscientização por Chapa nomeada como “Diga com quem andas” e logo em seguida, sendo cantada pelo grupo. A letra da música tem como propósito passar a mensagem de superar as dificuldades presentes no cotidiano:

Na verdade o que eu quero é te ajudar

Se você está disposto a largar esse vício de mão

Pode crê meu irmão!

Te ajudaremos a encontrar uma solução

Comece lendo um bom livro use o dicionário

Educação, informação é necessário

Sei que és esperto e inteligente

Então tome atitude certa e consciente

Anderson Silva durante entrevista concedida no campus Fapa da UniRitter -crédito: Érica Sena.

Um bom lugar

Com a virada do século, o destino se encarregou de fazer com que no ano de 2002 Chapa conhecesse o Tutu formalmente nomeado como Fabiano e subsequente apresentado para o fundador da banda. Por mais que Fabiano fosse parte de outro grupo, existia uma rede de apoio muito grande entre todos que cantavam juntos para fomentar o nome do rap e ajudar a desenvolver para fora da comunidade e regiões metropolitanas

Um dos exemplos citados foi o “Festival da música de Porto Alegre” no Parque Chico Mendes composto por alguns grupos: Alvo X, Gaviões Rap, Nordeste MC’s e outros. Ainda que fosse um evento de competição, existia uma rede de companhias, assim como na música do intérprete Sabotage, ali estaria se firmando como um bom lugar com humildade para criar suas músicas e estender suas raízes.

Em 2005, a saída do fundador do grupo musical não fez com que fosse o término do Alvo X. O combustível se tornou forte para dar continuidade no trabalho que tinha sido inserido dentro da comunidade.

O grupo musical passou por diversas reformulações na banda, no ano de 2008 o Bairro Mário Quintana ganhou um novo morador, esse o qual era Fabiano que já havia tido contato com a banda em anos anteriores e assim no ano de 2011 veio a fazer parte do elenco. O grupo musical com alguns anos de trajetória já havia colecionado períodos memoráveis, um dos momentos mais importantes para o Tutu foi quando o grupo se reuniu na praça Liberato, “ali a gente viu, o bagulho vai da certo, pessoas que nunca tinham ouvido nosso som, escutaram e eu ba vai da certo é isso que a gente tem que fazer.”

Contudo, no ano de 2012, infelizmente teve que dar uma pausa que comprometeu sua trajetória na banda. Com sintomas de Disfagia, não conseguia engolir e imediatamente necessitou fazer cirurgia para que o problema não agravasse. O integrante relatou que a recuperação foi tranquila, mas que não teria como continuar pela fraqueza após o procedimento feito.

Por mais que tenha sido uma passagem curta, ainda sim é uma passagem que ficou muito marcada na vida de Tutu, um dos projetos que carrega com destaque e orgulho foi o “Brincando sem armas” onde através da influência motivava as crianças a trocar os brinquedos com formato de arma por um que fosse sadio.

Fabiano Marques Lima durante entrevista concedida no campus Fapa — crédito: Augusto Edinger

Em 2014 em um dos eventos na vila Timbaúva, veio a proposta para que houvesse a adesão de mais um membro no grupo. A entrada de Gelson Campos vulgo “Fubu 470” fez com que a banda se reinventasse depois de muitos anos. O 470 é popularmente reconhecido como codinome para Bom Jesus, bairro de Porto Alegre em que o participante morava, um tempo depois, transmudando para o Bairro Mário Quintana.

Foto da entrevista feita com o integrante Gelson Campos. Disponível no Spotify. Crédito: Augusto Edinger

Fubu foi criador do evento “Rap na Rua” que existe há 10 anos. A finalidade do evento é que expandisse o estilo musical e sucessivamente a ideia teve muito apoio das fundações da Zona Norte. Na época estava em trabalho solo com outros amigos, mas teve bastante apoio da Alvo X e outros grupos, e sempre contou com uma grande receptividade das comunidades, tanto que o evento foi bem recepcionado ao ponto de ser feito em outras cidades do estado, o festival ainda continua existindo e tendo a mesma euforia e competência que se tinha desde o começo.

No início Fubu ainda morava na Bom Jesus, então os meninos do grupo saíam da Chácara da Fumaça até o bairro para ensaiar.

Foto dos primeiros ensaios da Alvo X no bairro Bom Jesus. Crédito: Gelson Campos
Ensaio da Alvo X na Bom Jesus. Crédito: Gelson Campos

No mesmo lugar em que foi convidado para fazer parte do grupo, foi o primeiro a cantar no palco já sendo oficialmente da banda, no evento semana do “Hip Hop Timbaúva”.

O grupo abraçou tão bem Gelson, que deixaram refazer a música “Diga com quem andas” adicionando novos beats que não havia na anterior.

Chapa Halls, Fubu 470 e Catatau no palco-Crédito: Gelson Campos

Eu sou o rap

Por mais que a história da banda e dos três não seja sobre fama, é sobre algo maior, o legado. No final de tudo se construiu algo que ficou na memória, algo que não foi nem um pouco fácil, mas que fizeram entender o valor que é a palavra referência, principalmente das famílias que no começo desconheciam o movimento que estava surgindo, mas que no final entenderam que o ato de cantar é por amor, amor pelo movimento do Hip Hop, amor pelo bairro em que desenvolveram e pela vontade de mudar a rotina que nem sempre fazia questão de ser amigável com os moradores.

O que se adquiriu são as amizades que foram feitas pelo caminho, o ato de cantar e demonstrar aos jovens os valores que devem ser agregados na vida, afirmando através das letras que o Alvo X é o rap e para sempre continuará fazendo parte do Bairro Mário Quintana.

Memorial: bastidores da reportagem

Nessa trajetória de dois meses, ter a oportunidade de conseguir escutar e captar as histórias de três cantores que usaram do seu meio para se tornar pessoas influentes no seu bairro é muito bonito. Eu, Sthefany Canez, posso dizer que muito mais que desafiadora a reportagem, é um caminho que me mudou como pessoa e ainda encorajo você que chegou até aqui no texto a procurar saber os relatos que permeiam na sua volta.

Por último gostaria de agradecer aos colaboradores que ingressaram nessa jornada comigo, sem o auxílio e o ímpeto de vocês não teria sido a mesma reportagem.

A estudante de Jornalismo, Sthefany Canez, entrevistando o cantor Fubu 470 no Campus Uniritter Fapa. Crédito: Augusto Edinger

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