A representação da mulher asiática nos filmes ocidentais

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9 min readAug 27, 2021

Por: Daniela Sayuri Ogusuku Sinke / Orientadora: Profª. Drª. Mirtes de Moraes Correa

Fonte: DepositPhotos: https://br.depositphotos.com/free-collection/mulher-%C3%A1siatica.html?offset=300&qview=171752176

RESUMO

Os meios de comunicação, desde os informativos até os de entretenimento, apresentam um papel elementar na forma como diversas comunidades são retratadas e recebidas pela sociedade, uma vez que perpassam discursos capazes de se tornarem predominantes entre os indivíduos. Na indústria cinematográfica, elementos como narrativa e construção de personagens podem contribuir com o racismo sofrido por minorias a partir da forma como essas pessoas são demonstradas na tela. A representação de mulheres asiáticas, principalmente por homens em Hollywood, pode ser encontrada desde os filmes em preto e branco do cinema mudo e os estereótipos construídos na época continuam a ser reforçados em produções recentes, de forma que as consequências dessa percepção são sentidas através de situações reais na sociedade. Por conta disso, se mostra necessária não apenas a compreensão integral da importância da representação no audiovisual, mas também a análise crítica da forma como a representatividade é ilustrada para os outros.

Palavras-chave: Representatividade; cultura; Piccadilly; comunidade asiática; produção audiovisual; Hollywood; representação na mídia.

  1. Introdução

A mídia apresenta uma forte influência no processo de formação de opinião pública, não apenas partindo da área jornalística, mas também da publicidade e da produção artística, como novelas, filmes e séries. Embora isso, muitas vezes, não apareça de forma explícita, o trabalho feito pelos meios de comunicação reforça estereótipos a respeito de minorias, interiorizando ainda mais preconceitos sobre esses grupos na sociedade.

O seguinte trabalho tem como objetivo analisar a maneira como a mulher asiática é representada nos meios de comunicação do Ocidente, tendo como principal objeto de estudo o filme britânico Piccadilly (1929), estrelado pela atriz sino norte-americana, Anna May Wong, assim como discursar sobre a influência que essa representação, através de construções estereotipadas, apresentam na sociedade.

Será analisada a caracterização da personagem Shosho, identificando construções frequentes, em Hollywood, relacionadas à identidade racial da personagem ilustrada a partir do ponto de vista europeu no filme, e levantando problemas sociais consequentes dos estereótipos reproduzidos no filme.

Além disso, é válido abordar a carreira da atriz e a importância de sua luta quanto à questão de representatividade, tendo em vista elementos pessoais de sua vida como uma mulher nascida nos Estados Unidos de ascendência chinesa, além de obstáculos enfrentados na indústria cinematográfica.

Por fim, levando em consideração os pontos discutidos em relação às mulheres asiáticas em filmes do Ocidente, será feita uma reflexão das ideias que são enraizadas por conta dessa forma de representação e de como isso interfere e prejudica a vida em sociedade para a comunidade asiática décadas depois no século XXI.

2. Asiáticas na mídia ocidental

2.1 Piccadilly

No ano de 1929, foi lançado o filme mudo Piccadilly, sob a direção do alemão E. A. Dupont, roteiro do inglês Arnold Bennett e produção da British International Pictures. O drama em preto e branco retrata um conflito de relações entre o dono do restaurante e boate noturna Piccadilly, Valentine, a dançarina, Mabel, e a funcionária, Shosho.

A primeira aparição da personagem interpretada por Anna May Wong ocorre na cena em que Valentine Wilmot se encaminha para a cozinha do restaurante, após a reclamação de um cliente sobre a sujeira em seu prato ter atrapalhado o solo de dança de Mabel, e encontra Shosho dançando em cima de uma mesa na frente de outros funcionários. Wilmot considera que a dança da moça esteja distraindo a todos e a demite.

Os negócios da boate entram em declínio após a demissão do parceiro de dança de Mabel, Victor, cuja performance era o motivo da popularidade da casa. Assim, Valentine decide contratar Shosho para se apresentar na Piccadilly. A partir desse momento, ela deixa de ser a copeira e passa a ser uma das dançarinas, tendo sido ovacionada após sua primeira apresentação de dança.

A caracterização da personagem de Wong demonstra, portanto, uma mulher com ascendência chinesa que passa de uma funcionária sem muita importância a uma das atrações principais da casa noturna. Contudo, apesar de soar como uma narrativa de evolução para Shosho, é necessário observar de forma crítica a sua representação para compreender como a obra reflete na vida real, uma vez que a cultura da mídia é um fator para construção de senso de identidade, conforme Kellner (1995).

O primeiro ponto a ser apontado é a ênfase na etnia de Shosho, como pode ser percebido na fala “Imagine o lugar inteiro perturbado por causa de uma garotinha chinesa da copa?”, em tradução livre, atribuída a Valentine no filme de 1929. Os espectadores, inclusive, não recebem detalhes sobre a família da personagem, não sendo possível afirmar se ela tenha nascido na Inglaterra, fazendo dela uma cidadã inglesa.

Além disso, a importância da personagem feminina para a trama aparece diante de uma necessidade de uma mudança nas performances da Piccadilly que volte a atrair o público. Dessa maneira, a dançarina é vista tanto pelo dono quanto pela clientela como “exótica”, trazendo um elemento novo e diferente do que era visto no salão. Essa visão impõe uma distância e, consequentemente, separação entre grupos minoritários, pessoas asiáticas no caso estudado, dos grupos dominantes.

A hipersexualização da personagem de Shosho fica evidente pelo pôster divulgado do filme:

Fonte: IMDb

Na imagem, ela é única personagem ilustrada, que ocupa espaço centralizado da imagem de cima a baixo, em uma pose sensual com os braços abertos expondo seus seios e vestindo apenas uma saia de tecido avermelhado, porém transparente, deixando sua perna à mostra. Na produção, Shosho veste um traje diferente do mostrado no pôster para sua performance.

A representação de mulheres asiáticas em produções audiovisuais nas quais suas figuras são sexualizadas, a partir do desejo sexual do outro por elas, se tornou constante na indústria. O estereótipo pode ser encontrado em filmes mais recentes, como: Austin Powers em O Homem do Membro de Ouro (2002), no qual são feitas diversas piadas de cunho sexual com gêmeas japonesas, e Meninas Malvadas (2004), em que a líder do “grupo de asiáticos” da escola, Trang Pak, é uma adolescente marcada pela libido e a relação íntima com o treinador Carr, um homem branco mais velho.

O principal conflito do enredo se deve ao triângulo amoroso formado entre as protagonistas femininas e o protagonista masculino. Desde a contratação de Shosho como dançarina, ela e o dono da boate se aproximam um do outro, embora isso seja retratado nas cenas implicitamente. A afirmação do relacionamento íntimo entre os dois ocorre na cena em que Shosho mostra seu quarto para Valentine, a primeira pessoa que ela recebe no cômodo. Porém, após a partida do homem e no dia seguinte, é descoberto seu corpo assassinado em sua casa.

Crimes contra mulheres asiáticas, a partir da percepção sexualizada, sobretudo de que suas profissões estão relacionadas à obtenção do prazer, não são apenas cometidos nas mídias, ao que ultrapassam a barreira da ficção. Em março de 2021, um homem iniciou tiroteios em três casas de spa na área de Atlanta, resultando na morte de oito pessoas, incluindo seis mulheres de ascendência asiática. O autor do crime afirmou á polícia ter um “vício por sexo” e que teria começado os ataques para eliminar sua “tentação”.

O caso em Atlanta, uma situação dentre uma série de ataques racistas que levaram ao surgimento do movimento “Stop Asian Hate” no ano de 2021, pode ser interpretado com fundamento no conceito, elaborado pelo sociólogo Pierre Bordieu, de violência simbólica, em que o reforço constante de algumas convicções induz ao posicionamento de acordo com critérios e padrões reproduzidos pelo discurso dominante, o do homem branco, mesmo perfil do atirador.

Apesar de interpretar um papel essencial do longa, a personagem de Anna May Wong recebe um fim abrupto e trágico. O anúncio de sua morte é noticiado nos jornais do dia seguinte e as pessoas próximas são questionadas para achar o assassino. Por fim, Jim, o músico de ascendência chinesa e também parceiro de Shosho, confessa o crime, motivado pela não correspondência da paixão que sentia pela jovem.

A cena final do filme é emblemática: é mostrada a mesma rua na qual foram vendidos os jornais com a morte de Shosho, no entanto, em vez de enfatizar a prisão do responsável pela morte da dançarina de sucesso, o quadro foca numa placa escrita “A vida continua”. Assim, termina a trajetória da mulher asiática, enquanto a vida dos demais personagens segue em frente sem parar.

2.2 A História de Anna May Wong

Anna May Wong possui uma grande importância na história da representação asiática na produção audiovisual do Ocidente. Foi a primeira atriz sino-estadunidense em Hollywood, contando com uma filmografia extensa de mais de 60 filmes durante sua carreira. Além disso, a estrela, que participou de produções do cinema mudo, atuou em uma das primeiras obras em Technicolor.

Nascida em 3 de Janeiro de 1905, na área de Chinatown em Los Angeles, foi a segunda geração de sua família, junto com seus irmãos, a nascer nos Estados Unidos, tendo em vista que seu pai, Sam Sing, e sua mãe, Gon Toy Lee, nasceram também no estado da Califórnia, enquanto seu avô paterno emigrou se para o país na década de 1850.

Os filhos do casal ingressaram na escola pública California Street, onde Anna May e sua irmã mais velha sofreram bullying por parte de seus colegas de classe por conta de sua etnia, fazendo com que tivessem de mudar para outra instituição de ensino. Ainda enquanto estudava, Wong passou a visitar os sets de filmagem e se fascinou pela produção cinematográfica.

No ano de 1919, houve uma audição entre mulheres chinesas para participar da produção de The Red Lantern. Essa foi a primeira participação de Anna May em um filme, na qual atuou como uma figurante. Foram muitos os papéis de figuração durante os anos de escola até conseguir seu primeiro papel principal em The Toll of the Sea, lançado em 1922.

De acordo com Alexander (2019), Wong participava de audições em busca de um papel como protagonista constantemente, embora conseguisse apenas personagens coadjuvantes ou típicos “personagens asiáticos”, carregados de estereótipos. Ainda, leis antimiscigenação nos Estados Unidos impediam a reprodução de cenas de beijo entre casais inter-raciais, limitando a participação da atriz em filmes românticos.

A atriz lutou contra a discriminação racial no meio hollywoodiano, criando sua produtora chamada Anna May Wong Productions, pela qual pretendia produzir filmes sobre sua própria cultura, porém ela teve de descontinuar devido a más práticas por parte de seu sócio.

Wong foi rejeitada para a protagonista do filme Terra dos Deuses, lançado em 1937, cuja narrativa retratava um casal chinês, e o papel de O-Lan foi para a atriz branca Luise Rainer, que ganhou um Oscar por sua atuação. Após a recusa, a produção ofereceu o papel de Lotus, a vilã sedutora, para Wong, que recusou e a criticou por tentar lhe dar a única personagem antipática em um filme com elenco americano interpretando personagens chineses.

A série Hollywood, produzida pela Netflix e dirigida por Ryan Murphy em 2020, procurou “corrigir” alguns acontecimentos reais ao contar a história de uma série de artistas em busca do reconhecimento em Hollywood. Entre eles, a atriz Anna May Wong que, ao final do seriado, recebe a estatueta pela interpretação na produção fictícia Meg.

Considerações Finais

A partir do filme britânico lançado em 1929, é possível observar o olhar do homem branco para a identidade racial e de gênero, especificamente para mulheres asiáticas. Percebe-se que, embora fundamental para a narrativa, a personagem de Shosho fica reduzida ao papel de rival da dançarina branca, uma vez que seduz e disputa o chefe da casa noturna, Valentine.

O drama Piccadilly, lançado há quase um século, quando ainda prevalecia a arte da produção cinematográfica muda e sem cores, reproduz diversas ideias preconceituosas da comunidade asiática no Ocidente, de forma que essas ideias tenham se tornado tão frequentes em outras obras a ponto de se tornarem estereótipos presentes na atualidade.

Contudo, a denominada Cultura da Mídia, originária dos meios de comunicação, ao retratar concepções que reduzem a identidade de pessoas asiáticas, assim como a de qualquer etnia, a um conjunto de características fixas, fortalecem a manutenção do discurso dominante na sociedade. O problema se torna ainda maior e mais prejudicial com a interiorização do pensamento preconceituoso na sociedade, do qual surgem crimes de ódio contra minorias raciais.

Assim, a presença de mais artistas de ascendência asiática nos meios de comunicação é essencial na produção audiovisual, permitindo que os próprios possam criar obras acerca de sua cultura e de suas vivências compartilhando de culturas múltiplas. A participação de asiáticos em todas as etapas do processo, além de impedir a propagação de preconceitos, demonstra a importância de grupos minoritários ocupando espaço na sociedade, através da representatividade, pela qual diversos espectadores se sentirão vistos e compreendidos.

Referências

ALEXANDER, Kerri Lee. Anna May Wong. National Women’s History Museum, 2019. Disponível em: < https://www.womenshistory.org/education-resources/biographies/anna-may-wong>. Acesso em: 16 de mai. de 2021.

BORDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Editora Betrand, 1989.

CAPUANO, Amanda. O que é verdade e o que é ficção na Hollywood de Ryan Murphy. Veja, 22 de mai. de 2020. Disponível em: < https://veja.abril.com.br/blog/e-tudo-historia/o-que-e-verdade-e-o-que-e-ficcao-na-hollywood-de-ryan-murphy/>. Acesso em: 16 de mai. de 2021.

FAUSSET, Richard; RIO, Giulia McDonell Nieto del; VIGDOR, Neil. 8 Dead in Atlanta Spa Shootings, With Fears of Anti-Asian Bias. The New York Times, 26 de mar. de 2021. Disponível em: < https://www.nytimes.com/live/2021/03/17/us/shooting-atlanta-acworth>. Acesso em: 17 de mai. de 2021.

KELLNER, Douglas. Media Culture. Londres: Routledge, 1995.

PICCADILLY. Direção: E. A. Dupont. Produção: E. A. Dupont. Londres: Wardour Films Ltd, 1929.

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