Análise Da Representação Feminina Na Série “Coisa Mais Linda” Em Comparação Com Dados Atuais
Lígia Pagni de Aquino e Maria Vittoria Manella / Orientadora: Profª. Drª. Mirtes de Moraes Correa
RESUMO:
A representação midiática feminina sempre foi muito associada e limitada a características e estereótipos sexistas, como a objetificação da imagem da mulher, seus corpos sexualizados, suas inteligências questionadas e seus feitos invisibilizados. Entretanto, esse cenário tem se transformado.
Devido às grandes mudanças históricas, surge uma demanda significativa por diversidade e representatividade na grande mídia, reivindicando as minorias sociais e exigindo a dispersão da ideologia patriarcal.
O presente trabalho busca analisar essa mudança de representação midiática a partir da série brasileira “Coisa mais linda” da Netflix, na qual, além de denunciar as diferentes opressões sofridas por quatro personagens femininas no final da década de 50 no Brasil, traz um questionamento e uma discussão ainda muito atual sobre a realidade de diversas mulheres.
PALAVRAS-CHAVE: Comunicação; Análise; Coisa Mais Linda; Representação; Mulheres.
Introdução
A série “Coisa mais linda” é uma produção brasileira do streaming Netflix, que foi criada por Giuliano Cedroni e Heather Roth e dirigida por Caito Ortiz. Estreada em 2019, possui duas temporadas e conta a história da vida de quatro personagens femininas e suas buscas e desafios para encontrar seus lugares no mundo no final da década de 50 e começo dos anos 60.
A protagonista, Maria Luiza (interpretada por Maria Casadevall), decide abrir um clube de música após ser abandonada e extorquida pelo marido, tornando-se sócia de Adélia (interpretada por Patrícia Dejesus), uma mulher negra que vive no morro e trabalha duro para sustentar a filha, à procura de uma vida melhor para si e para a filha. A terceira mulher é Lígia (interpretada por Fernanda Vasconcellos), que tem uma realidade parecida com a de Malu, jovem e casada, seu sonho sempre foi ser cantora, mas o marido não aceita ter uma esposa que trabalhe. Por último, Thereza (interpretada por Mel Lisboa), uma jornalista que acaba de voltar de Paris e trabalha em uma editora renomada, onde luta para conquistar espaços para as mulheres na revista feminina sendo a única repórter mulher, uma vez que as colunas eram escritas por homens, que assinavam seus textos com nome de mulheres. Além disso, vive um relacionamento mais desconstruído para a época, no qual ele não a maltrata, como acontece com outras.
Malu, Adélia, Theresa e Lígia são de origens e dores diferentes, porém todas elas sofrem com diferentes opressões e por isso se unem, dando suporte e apoio uma à outra. Compartilham suas vivências e, mesmo não sentindo as mesmas dores da outra, há uma sororidade e empatia muito importante para a construção e fortalecimento da história de cada uma, sendo isso algo muito positivo, uma vez que é muito comum personagens femininas diferentes serem colocadas na tela como rivais. A potência dessa sororidade possui grande destaque no enredo, porém, ao mesmo tempo, mostra os limites da mesma, deixando evidente não é algo automático, oriundo do fato de serem todas do mesmo gênero, uma vez que, para haver essa solidariedade entre diferentes mulheres é preciso um esforço de empatia e escuta, e, assim, construir um feminismo que represente a diversidade entre mulheres.
Paralelo entre os dados sociais brasileiros e as personagens
A série se passa no período dos chamados “anos dourados” brasileiros, a época de ouro do capitalismo brasileiro e das elites das grandes cidades. Este representa um momento de florescimento econômico e cultural do Brasil, quando o samba e a bossa nova começam a tomar forma e a série retrata os grandes desafios e lutas cotidianas das mulheres no Brasil, em que há um protagonismo masculino na música, na política e na economia.
Coisa Mais Linda mostra as muitas diferenças do universo feminino, revelando divergentes pontos de vista sobre a sociedade brasileira, mas, ainda muito focada em uma perspectiva hegemônica sobre a história das lutas das mulheres no país, dando mais destaque às opressões de mulheres brancas e de classe média, que, nesse período, lutam por espaço no mercado de trabalho e poder sair da frustração da vida doméstica.
Maria Luiza, branca, de classe alta de São Paulo, casada e mãe de um filho pequeno, acredita viver uma vida perfeita para os padrões que aquela sociedade exigia, até descobrir que seu marido, que havia se mudado para o Rio de Janeiro para abrir um restaurante com o dinheiro dela, fugiu com outra e a deixou cheia de dívidas. Assim, inicia-se suas ambições feministas: poder trabalhar e ser independente do pai e do marido, abrindo seu próprio negócio, um clube de música na cidade maravilhosa, apesar das limitações legislativas da época (a mulher era considerada incapaz de exercer atividades remuneradas), conciliando o trabalho e a maternidade.
Segundo um relatório de pesquisa do Sebrae, as mulheres respondem por 34% dos 27,4 milhões de Donos de Negócio (Empregadores + Conta Própria) existentes no Brasil, apesar de serem 52% da população brasileira, e, ainda ganham menos do que os homens (22% a menos). Além disso, mulheres empresárias (com CNPJ) pagam taxas de juros maiores, apesar da taxa de inadimplência das mulheres ser mais baixa.
Por outro lado, temos Adélia, uma mulher negra, moradora da favela no Rio de Janeiro, que se torna sócia de Malu à procura de uma vida melhor para si e para a filha. Diferente de uma mulher branca de classe alta, mulheres negras, desde a escravização e mesmo após a abolição formal, já faziam parte do mercado de trabalho, em sua maioria como trabalhadoras domésticas ou em outras formas de subemprego. Assim, suas ambições feministas estão ligadas a sua raça, classe e gênero, na qual busca pela possibilidade de poder estar mais presente e conviver com sua filha (fruto de uma relação não legitimada com o filho de uma antiga patroa), de viver uma relação amorosa de verdade, visibilidade social para ter o mínimo de dignidade e de respeito no trabalho, uma vez que o mesmo não é uma escolha para ela, mas uma necessidade desde seus 8 anos de idade, além de poder ter oportunidades que a permitam sair da pobreza e da exclusão.
No contexto da época, as vidas das duas mulheres se distanciariam completamente ou apenas teriam alguma convivência se Malu contratasse Adélia como empregada doméstica, mas, na verdade, a relação entre elas é de parceria, principalmente na criação do bar musical. Umas das cenas mais visualizada da série é o momento em que a narrativa destaca a diferença que existe entre essas mulheres, ampliando, assim, a narrativa do feminismo branco, ao dar voz aos questionamentos e sofrimentos das mulheres negras. Malu vive, pela primeira vez, um sentimento intenso por não conseguir trabalhar e pelo abandono do marido, assim, considera-o como se fosse maior, mais grave e mais importante do que tudo que estava à sua volta. Entretanto, Adélia e ela se confrontam e expõem suas diferentes concepções de mundo, onde a mulher negra e de baixa renda surpreende a mulher branca e rica com uma luta e desafios divergentes dos seus.
Segundo uma publicação de divulgação científica da Unifesp, a filósofa e pesquisadora Djamila Ribeiro afirma em 2016:
Não é possível falar de gênero, sem incluir classe e cor de pele, já que o próprio racismo cria uma hierarquia de gênero, colocando a mulher negra em situação de maior vulnerabilidade social. O racismo indica classe, coloca a população negra em desvantagem. Não é possível lutar contra um tipo de opressão e fomentar outro. É alimentar a mesma estrutura. (RIBEIRO, 2015).
Uma pesquisa realizada pela consultoria Indique Uma Preta e pela empresa Box1824, indica que menos da metade das mulheres negras brasileiras exercem trabalho remunerado e apenas 8% das que trabalham no mercado formal ocupam cargos de gerente, diretora ou sócia proprietária de empresas.
A personagem Lígia, amiga de infância de Malu, é casada com um candidato a prefeito do Rio e aparentam ser um casal perfeito na frente das pessoas, mas, na verdade, por trás, ela é reprimida pelo conservadorismo dele, sofrendo em silêncio várias agressões psicológicas, verbais, físicas e até mesmo sexuais do marido. A série retrata de uma maneira muito impactante o processo de consolidação da culpa, como se o comportamento feminino pudesse justificar o comportamento abusivo por parte do agente masculino. O pensamento da personagem reflete o pensamento da época no qual casamento deveria ser amparado a qualquer custo. Um dos maiores sonhos de Lígia é ser cantora, mas como tudo em seu relacionamento, o marido a reprime e não a deixa a cantar por conta do ciúme que sua voz e sua beleza física causam nele. Quando canta no palco do clube de Malu e Adélia, Lígia também se empodera pela sua voz interior, mas o marido a violenta física e psicologicamente. Em seguida, a cantora reconhece a real situação do seu casamento e compartilha com suas amigas, retratando como há uma resistência em reconhecer certos casamentos como espaço de opressão.
Esse tipo de violência contra mulher, na qual ainda é uma realidade muito atual, é resultado de relações de poder construídas ao longo da história pela desigualdade de gênero e consolidadas por uma ideologia patriarcal e machista. Na construção da personagem de Lígia, a série expõe de maneira tocante essa opressão, retratando a violência doméstica e o feminicídio. Segundo a Redação Catraca Livre, em 2020, “por dia, três mulheres são assassinadas, vítimas do feminicídio, no Brasil. A cada dois segundos, uma mulher é agredida no país. Quase 80% dos casos, os agressores são o atual ou o ex-companheiro, que não se conformam com o fim do relacionamento.”
Já Thereza, concunhada de Lígia, é jornalista e trabalha na revista feminina Angela, onde, até certo ponto da história, é a única repórter mulher. Vive um relacionamento mais desconstruído com seu marido, no qual não a oprime como os outros. Ela possui ideias mais progressistas para época, porém, sofre com a opressão masculina no ambiente de trabalho. Mesmo trabalhando em uma revista voltada para o público feminino, as colunas eram escritas por homens que assinavam seus textos com nome de mulheres e Thereza lutava para conquistar o espaço das mulheres neste ambiente.
A luta, retratada pela série, por uma maior ocupação das mulheres no mercado de trabalho e por uma igualdade salarial, ainda é uma realidade muito evidente no Brasil. Segundo o Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua):
Em 2018, o rendimento médio da população ocupada de 25 a 49 anos de idade era de R$2.260. O percentual do rendimento médio recebido pelas mulheres era predominantemente inferior ao dos homens em todas as ocupações selecionadas, independentemente de a ocupação apresentar baixa ou elevada participação feminina ou ter rendimentos baixos ou elevados. […] Em 2018, o valor médio da hora trabalhada era de R$13,0 para as mulheres e de R$14,2 para os homens, indicando que o valor do rendimento da mulher representava 91,5% daquele recebido pelos homens. Quando analisada a razão do rendimento de mulheres e homens (percentual do rendimento dos homens que as mulheres ganham), a proporção diminuía, sendo de 79,5%: valores de R$2.579 (homem) e R$2.050 (mulher). — Estudo Especial sobre Diferenças no Rendimento do Trabalho de Mulheres e Homens nos Grupos Ocupacionais, feito com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios.
Podemos dizer que todas as personagens questionam sua realidade ao longo do enredo, mas Thereza representa uma figura muito importante, uma vez que mostra esse questionamento e uma maior consciência das opressões das mulheres desde o início.
Ao representar essas diferentes personalidades em uma época não muito distante, a série traz uma discussão e reflexão muito importante e atual, estabelecendo um duplo diálogo e denunciando as opressões que diferentes mulheres sofriam e ainda sofrem. Para Renato Meirelles e Celso Athayde, é preciso “mostrar a realidade, nua e crua, sem enfeites, sem plumas e lantejoulas”, porque “assim fica mais fácil abrir caminhos e construir um futuro melhor, livre da mentira, das desigualdades.” (MEIRELES, ATHAYDE, 2014, p. 21, 22). Para eles, é necessário uma representação da realidade que possibilite o reconhecimento e o diálogo, para que, assim, a discussão não se restrinja ao desejo dos intelectuais, mas também daqueles que vivem o dia a dia da exclusão.
Considerações Finais
Durante todo o corpo do trabalho, analisamos alguns estigmas e fenômenos sociais vividos pela figura feminina, que, apesar de muito mais gritantes e expressivos há sessenta anos atrás, perduram até os dias atuais. É inegável ressaltar as grandes vitórias da luta feminista durante esse tempo, no entanto é ingênuo achar que esse árduo caminho da igualdade e justiça de gênero está no fim, ainda há muito a ser reivindicado em nossa sociedade. Vivemos em um país machista e preconceituoso, que mata mulheres pelo simples fato de serem mulheres e que as subjuga em quase todos os seus comportamentos, a série Coisa Mais Linda evidencia isso e os dados trazidos, provam. Obras cinematográficas como essa são importantes para incitar esse tipo de reflexão social, podendo até abrir os olhos de muitos quanto ao assunto; somadas, é claro, a prática de ações dentro da luta feminista como a sororidade, a consciência da mulher negra como mais vulnerável e o engajamento de cada vez mais mulheres em setores como a política e o empresariado são fatores essenciais para mais conquistas contra a desigualdade de gênero.
Referências
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Artigo produzido sob a orientação da Profª. Drª. Mirtes de Moraes Correa, responsável pelo projeto integrador: Por uma forma de comunicação mais inclusiva. Este trabalho não reflete a opinião da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Seu conteúdo e abordagem são de total responsabilidade de seu autor.