Comunidade não é unanimidade

Sheila Gomes
Comunicaminhos
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4 min readMay 21, 2019
Ainda bem! (foto de Sam Carter no Unsplash)

Participo de algumas comunidades diferentes, algumas na organização também. Por quê? Acredito de verdade que juntos somos mais fortes. E sendo mais forte em conjunto, sinto mais liberdade em assumir minhas vulnerabilidades e entender as alheias. Também aprendo mais, pois tenho mais oportunidades de ver o outro e, quem sabe, entendê-lo, mas principalmente, aceitá-lo. Mesmo quando não concordo com a pessoa, posso tentar ver o que ela sustenta e o que a sustenta. E ver o que essa discordância ativa em mim e quem sabe entender melhor o que sou e meu papel no mundo. Enfim, só vantagem, certo? Pra mim, sim, mesmo quando o convívio é difícil. Porque até isso ensina.

Essa é uma das razões que me faz valorizar tanto a diversidade dos membros (e a promoção dela) nas comunidades, porque a sociedade é diversa e as comunidades deveriam espelhar isso. Eu aprendo mais quanto tenho contato com o diferente. E acredito que devo me expor ao maior número de pontos de vista que eu puder, porque isso aumenta a chance de me situar melhor no aqui e no agora. A oportunidade de ver e ouvir o outro amplia nossa consciência sobre as consequências dos nossos atos. E ao me expor aos conflitos possíveis em um meio tão diverso, posso melhorar como ser humano, cidadã, mãe, pessoa.

É por isso também que participo de várias comunidades diferentes: para que a minha visão de comunidade não seja definida e restrita por uma única experiência, pois isso limitaria o potencial de colaboração prestada e aprendizado ganho no grupo. Além disso, ao participar de vários grupos diferentes eu me exponho a muito mais visões e ideias, posso enxergar mais longe e ainda levar esse conhecimento às outras comunidades de que sou membro. Porque ser ponte também é muito importante pra mim.

E na minha vivência em comunidades, descobri que os membros individuais de uma comunidade nunca representam a comunidade toda. Essa, aliás, é uma das belezas e também uma das dificuldades de viver em comunidade. Eu sempre tive problemas com gente que se arroga autoridade e acha que deve ser ouvida por conta de seu currículo, idade, posição social, econômica ou hierárquica. Ou porque fala mais alto. Mesmo assim, sempre achei que todos merecem empatia, mesmo quando era difícil pra mim oferecê-la.

Mas empatia não é aprovação.

Ou seja, nem tudo é lindo em comunidade. Eu mesma já ajudei a trazer conflitos à tona porque na época me parecia importante discutir a questão. Não é um papel que busco com vontade, porque ninguém gosta de ser a pessoa chata que levanta os problemas. Mas às vezes é preciso, e não é fácil lidar com essas situações com empatia (dos dois lados), por mais que eu sustente essa ideia. Por isso que a noção de empatia não ser aprovação me soa tão importante: é possível e necessário acolher as ideias e posições dos outros sem ter que concordar com elas, mas conversar para trabalhar junto e atingir objetivos comuns.

Foram situações assim que me fizeram chegar a algumas conclusões que aponto abaixo. Não para ninguém concordar/discordar, mas para destacar a importância de repensar as coisas:

O que é inaceitável para mim pode ser normal para o outro

Sabe aquelas coisas que podem parecer óbvias, mas é sempre bom lembrar? Essa é uma delas. E não preciso nem devo ensinar ao outro o que é “verdade”, pois isso depende muito da visão de mundo e condição de vida de cada um, entre outras coisas. Mas somos todos responsáveis pelos destinos da comunidade, sendo participantes ativos ou mesmo quando só aceitamos as ações dos outros.

Se você aceita os benefícios de viver em comunidade, precisa aceitar também a responsabilidade de viver em comunidade (Eliane Brum)

É preciso saber separar o pessoal e o profissional?

Antes eu afirmava isso, mas minha noção sobre a questão mudou bastante. O que “separar as coisas” nos trouxe? Desconexão, desrespeito a direitos, práticas de mercado desumanizadoras. Então hoje defendo que separar as coisas pode ter utilidade pra organizar, mas não acho que devamos discutir trabalho deixando de fora questões que o afetam diretamente, como filhos, dificuldades da vida, desgaste físico, fragilidade econômica, abuso de qualquer tipo. Essas são questões que deviam ser levadas em conta, pois o que nos faz humanos íntegros é justamente nossa inteireza, e acredito que nos dividir entre “profissional” e “pessoal” entre 8 da manhã e 6 da tarde é uma violência que traz muitas das distorções que vemos no mundo do trabalho e nas comunidades profissionais hoje.

O dissenso pode ser tão ou mais importante que o consenso

Cresci ouvindo que para convivermos bem precisamos de consenso. Mas também vi, em muitas ocasiões, essa retórica sendo usada para calar minorias. E pessoas historicamente silenciadas podem ter muita dificuldade de sequer colocar sua voz se não tiverem espaço para isso. Por isso que valorizo o reconhecimento do dissenso, junto com o diálogo, para todos serem ouvidos e discutir o que nos afeta a todos o máximo possível, em toda oportunidade que surgir. Pode ser que isso torne as discussões longas, pode demorar para se chegar a algum lugar, mas seguir no exercício da hipocrisia que valoriza o consenso como única prática possível me parece mais uma violência, além das muitas que sofremos hoje.

Aprender sem compartilhar não faz sentido

Esse é o sentido da vida e das comunidades existirem, uma não pode sobreviver sem a outra. Cuidamos uns dos outros para continuarmos existindo. Mas existir apenas é pouco, então esse cuidado não deve acontecer fora dessa lógica do aprender e compartilhar, pois mais importante que cuidar é ensinar a se cuidar para que cada um possa também aprender e compartilhar, para continuarmos crescendo e evoluindo.

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Sheila Gomes
Comunicaminhos

Tradutora que constrói as pontes possíveis entre comunidades. Também localiza sites, software e jogos.