A ânsia pelos chinelos

Anabeatriz
Comunidade da Escrita Afetuosa
3 min readFeb 25, 2024

Eu saí de casa no sábado à tarde. Caminhei pelo bairro e fui direto na loja de sapatos mais famosa à época.

O entra e sai de carros na entrada da loja era intenso. Os manobristas corriam de um lado para o outro. A fila de carros ia aumentando nas proximidades da Avenida Moema.

A loja tinha ganhado fama, especialmente no quesito de sapato para festa. O casamento dos amigos Sofia e Ângelo se aproximava e eu precisava de um par para combinar com o vestido cinza.

Olhei as diversas prateleiras recheadas de sapatos. Fui tateando entre as opções até que um modelo de ouro velho chamou minha atenção. O salto era fino, de mais ou menos dez centímetros, as tiras rentes aos dedos com um detalhe em “strass”.

Achei a bolsa combinando no mesmo tom e levei bolsa e sapato. Estava pronta para o casamento.

No dia da festa, fiz uma escova no cabelo, maquiagem, brincos, vestido e por fim o sapato. Andei pelo apartamento de um lado para o outro. Ali, comecei a notar que o solado era muito fino, meus dedos quase que encostavam no chão. O salto não me dava muita estabilidade, eu me forçava a manter a postura reta.

Chegando na igreja, seguro forte no braço de Alex. O salto parece como um pêndulo na medida que eu caminho. Disfarço. Como uma das madrinhas, fico de pé no altar enquanto o padre recita o sermão. As tiras começam a apertar meus dedos, uma certa câimbra no colo de pé, pior do que se eu usasse uma sapatilha de ponta nos pés.

A cerimônia se arrasta. Meu sorriso amarelo parece que me denuncia. O pé lateja. Hora de abraçar os noivos.

Caminho pelo tapete da igreja em direção ao carro. Que alívio sentar-me. Arranco os sapatos imediatamente. Suspiro. Não dura muito, pois é hora de ir à festa.

Já busco a mesa que estava reservada aos padrinhos. Acomodo-me na cadeira. A toalha branca cobre a mesa redonda e, por debaixo dela, tiro delicadamente o calcanhar do sapato. A minha vontade é calçar o quanto antes o par de chinelos que virou moda darem aos convidados nas festas de casamento.

Aguento a ansiedade. É hora de conversar com os padrinhos sentados juntos para o jantar. Calcanhar de um lado, calcanhar do outro.

Firmo os pés sobre o sapato novamente e vou até a mesa onde a comida está sendo servida. O salto fino bambeia de um lado para o outro, os dedos parecem que vão sair para fora. Olho para o meu pé, já com o prato de comida em mãos e me surpreendo aos vê-los ligeiramente vermelhos.

Sento-me. Desta vez, sorrateiramente tiro uma parte maior do calcanhar para fora do sapato. Respiro aliviada. Me delicio com o filé mignon. Tomo um gole de vinho. Sorrio para os convidados.

Avisto uma das convidadas caminhando pelo salão na maior tranquilidade. O salto dela era maior do que o meu. O solado mais grosso, o que dava a ela maior estabilidade. Desejei aquele sapato para mim.

Eu já pensava que esse sapato de ouro velho seria aposentado logo após a festa. Pensei se seria possível um ressarcimento com a loja. Como já foi usado, seria difícil. Prejuízo.

A sobremesa começou a ser servida. Eu permanecia sentada, estática. Tirava cada vez mais um pedaço do calcanhar para fora. Os dedos mais aliviados. A música começou a ficar mais alegre. Algumas pessoas se animaram para irem ao centro do salão dançar. Eu continuava ansiando pelos chinelos. Era uma questão de necessidade.

Recuso o convite para dançar. Bebo mais um gole de vinho. Parece uma miragem, mas vejo uma funcionária da equipe da organização da festa com os chinelos nas mãos.

Vou na direção dela. É trinta e sete. É trinta e sete. Volto para a mesa. Agora sim, posso arrancar com vontade aquele sapato incômodo da loja famosa que vende de tudo, até sapato que aperta o pé. Levanto a taça. Um brinde aos noivos.

Fevex2

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