A alma que diz: “Obrigada”.

Thais Almeida
Comunidade da Escrita Afetuosa
3 min readMar 30, 2023

“Acho que está bom assim.” disse pra mim quando me olhei no espelho. Estava prestes a sair de casa — escondida — para conhecer um terreiro. De Umbanda. Meu coração saindo do peito, minhas mãos suando frias e eu achando que era nervoso. Mal sabia o que me esperava.

Me lembrava do meu avô contando “Sua bisavó dançava samba de terreiro” , de como eu me sentia lendo sobre os Orixás, as entidades, do estranho pertencimento ao ouvir os batuques de Clementina de Jesus, Lia de Itamaracá, Tião Carvalho… e de um negro senhor em numa festa de São Benedito, me dizendo que o tempo do encontro se aproximava… A alma já indicava os passos.

Até aquele momento eu era só uma estudante, curiosa para ver e escrever sobre os limites de um corpo que transcende o tempo e o espaço no fenômeno da incorporação. Já tinha um roteiro na minha cabeça. Chegar, sentar, observar, escrever, ir embora. A amiga que me levou foi perceptiva com minha ansiedade e caprichosa nas orientações. “Vá de coração aberto.” Tarde demais. Quando coloquei meus pés no portão, meu coração já estava escancarado.

Tudo era novo e não era ao mesmo tempo. “Deixa eu te apresentar uma pessoa antes” falou minha amiga. Deixo. Mal tive tempo de levantar a cabeça e um homem de quase dois metros de altura, todo vestido de um azul petróleo estava na minha frente. “Esse é o Pai” Me encolhi. Comprimentei. As mãos suaram frio, outra vez. Os olhos dele miraram minha testa. Comprimentou e saiu rapidamente. “Que sensação esquisita. Podia jurar que esse Pai entrou na minha mente.” comentei.

Fiquei sentada do lado de fora de um circulo de madeira que eles chamavam de “campo sagrado”. Por lá chegavam as entidades espirituais que depois, reconheci como caboclos e caboclas. Passaram homens, mulheres, crianças e eu pude acompanhar de perto a emoção dessas pessoas. Era um dia de batismo. E mesmo sem conhecer cada um deles, eu conseguia criar uma narrativa sobre as histórias de todos naquele lugar.

No meio deles estava o Pai. Mas de um jeito diferente. Os olhos estavam mais cerrados, sua expessão era mais séria e a timidez de mais cedo, parecia ter sumido. Aquele olhar parecia enxergar tudo. Além dali. Passaram quatro, seis, dez horas. O dia findou, a noite chegou e aquele homem alto e de olhar firme continuava atendendo as pessoas, uma a uma. Todas elas desabrochavam. Pareciam despertar pra uma nova vida depois dali. Vendo tudo isso, eu quis mandar um recado pra Deus. “Saudade de casa.” pensei. Mas não a minha casa. Aquela, que em algum canto eu sabia que existia, mas não encontrava.

Meus olhos eram oceanos e eu submergi. Outra vez senti o coração bater forte e as mãos suarem. Quando voltei pra superfície, o homem alto veio em minha direção. Limpei as lágrimas pra enxergar melhor e me percebi sozinha do lado de fora. Ele atravessou o campo, me estendeu as mãos, sorriu e quando o toquei, eu entendi o que não entendia. O pertencimento. O tempo do encontro que havia chegado e a saudade que enfim se findava. Ouvi minha alma, sussurando: “obrigada.”

Mania essa que a gente tem de procurar Deus no longe. De achar que ele está nas grandiosidades. Naquele momento Deus estava nos olhos de um homem incorporado em uma entidade chamada Caboclo Tupinambá. Quantas vezes eu já tinha sentido aquilo? Quantas vezes meus olhos se fecharam para ouvir sem a sombra de qualquer dúvida, o que um silêncio tinha a dizer ao meu coração? “Isso é Deus, minha filha”, alguém soprou no meu ouvido. “Na potência e na sutileza, nas palavras e na ausência delas.”

Essas expressões, vindas desse invisível, estão sempre por aí a nos rodear. Cedo ou tarde se tornam tangíveis. E quando me perguntam se acredito em tudo isso, parafraseio Alvares de Azevedo: “Eu creio, porque creio. Sinto e não raciocíno…” Minha alma tinha reencontrado seu lar e mal eu sabia que esse era o início de uma jornada marcada pela eternidade.

Essenciais 1: Auroramod1ex1

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Thais Almeida
Comunidade da Escrita Afetuosa

Descobrir novas possibilidades e agregar valor na vida das pessoas é o que me motiva. Compartilhar tudo isso através da escrita, é o que me expande.