A canga
As mulheres estão com potes na cabeça, daqueles de carregar água. Algumas trazem os filhos atados às costas, maneira muito comum por lá. As cores? Ah, tem preto bege e um tom de amarelo que lembra terra. Assim que eu bati o olho eu sabia que iria comprar essa. É assim: quando meu olho gosta de alguma coisa, nem adianta ele olhar dez mil outras depois, ele sempre acaba voltando naquela primeira e o bolso paga é pelo primeiro amor mesmo. Então, foi assim comigo e a canga da África. Nem sei porque eu digo África, se é um país só e ainda por cima é um dos menores de lá. Deve ser costume mesmo. Pois então, eu estava na praia, relaxando, ou tentando, cuida de menino, cuida o sol, cuida a bolsa, cuida os vendedores… quem relaxa assim!? Daí, meus olhos a viram. Muito alta, bem preta, agitada, rápida, vendendo canga. Eu a escutava ainda de longe. Não demorou muito chegou até mim. Soltei logo um “Na ngaen def?”, ela me olhou com tanta interrogação que parou até de mostrar as cangas e me respondeu de maneira automática os cumprimento feito em wolofe, porque eu sabia, ah, eu tinha quase certeza: alta daquele jeito, magra, com a pele bem escura, rosto forte, suspeitei logo ser senegalesa, por isso cavuquei na memória a saudação na língua popular do Senegal, aquela que abre todos os sorrisos e portas… e deu certo. Eu sorri, ela sorriu e já desandou a falar a língua da casa dela. Pois é, eu não sabia mais nada, não. Eu só pedi desculpas e disse que eu parava ali mesmo, não sabia mais nada. E ela já se achando de volta ao país dela, passou pro francês e começou a fazer um monte de perguntas. Ah, eu também segui adiante, respondi com o que eu sabia de francês e ela sorrindo, sorrindo com a boca, com as mãos, com o corpo todo. E a canga? Pois então, eu queria puxar mais assunto, fazer amizade. Comecei a pedir pra ver quais tipos ela tinha. E ela puxava as cangas, sorria e mandava uma pergunta, pulava pro português, daí voltava pro francês, a própria Babel! Eu entendia que não poderia tê-la muito tempo por ali, ela tinha que vender seus produtos. Foi então que vi essa canga. Pra eu descrever de novo? Tá, vou contar um pouco mais. Mais bege do que qualquer outra cor. Com umas barras de linhas tribais nas laterais, sabe? Cinco mulheres numa fileira africana, com duas crianças no meio delas. Cestos, potes, frutas, palha, filhos, tudo ao redor do corpo delas, formando um ser só. O olho bateu e foi essa. O preço? Vinte e cinco reais. O interessante foi a parte da negociação, sabe? Ah, porque isso lá era o que mais me cansava. Sério! Não tinha paciência, não! Mas essa amiga da praia me pregou uma peça. Ela me deu um desconto sem nem eu pedir. Eu ia até comprar duas, mas o casal da mesa ao lado também se interessou, deixei pra eles. Percebi que nosso tempo acabava. Agradeci na língua dela. Djiri djifi. Ela sorriu e falou pra eu anotar o telefone dela. Obedeci rapidamente, mesmo sabendo que provavelmente essas seriam nossas últimas palavras. É o dom da saudade, né? Fazer de pequenos instantes grandes alegrias. Fazer do próximo o vislumbre do distante. Ela me lembrou Guiné com sua cor, força e alegria; eu a fiz lembrar de casa, com quatro palavras ditas. E a canga? Virou quadro na sala. Amigas pintadas em um pano. Eu as visito, vez ou outra eu as visito.
Auroramod2ex1