A coca-cola de sobremesa
No gargalo era que a coca-cola de garrafinha era boa, né? Tinha um sabor diferente, parece que ficava com mais gás, menos doce, sei lá. Ela se sentou no degrau da porta do quarto da empregada e começamos a conversar e a beber da garrafinha bem geladinha. Falou do seu casamento aos 17 e da pressão que sentia por ter que cozinhar sozinha para o marido e para o sogro, que era viúvo. Algumas vezes, o que não agradava ao gosto do velho Salomão ia para o chão e ele se levantava rispidamente da mesa, ao que se seguia o olhar desaprovador do marido. Narrou a cena com o olhar perdido no passado, bebericando o líquido preto gasoso. Apesar de revelar certa mágoa raivosa, a fala também deixava perceber a jovem de 17 anos (assim como eu tinha àquela época) às vezes solitária, às vezes medrosa e muito saudosa da casa e do colo da mãe. Foi a primeira vez que a vi inteira, tão aberta, sem defensiva. Estranhei. Não consegui acompanhar aquele mergulho que ela dera porque o ineditismo de sua fragilidade me paralisou. Frágil! Quem diria? Tão forte! Tão bonita e vaidosa em seus 77 anos: orgulhava-se do rosto sem rugas (dizem que o consumo de coalhada ajuda muito!). Naquela noite, minha avó me surpreendeu depois do jantar. A coca-cola de sobremesa serviu para dissolver as doloridas memórias dos seus 17 anos.
exercício 1- história vivida