A ESCRITA DA FALTA

Belkis Pannaci
Comunidade da Escrita Afetuosa
3 min readJan 29, 2024

Como se escreve a falta? Não descrever, mas escrever mesmo. Com qual palavra? Q letra que usa? Toda a minha infância e uma parte da adolescência passei as férias na casa da minha avó no Vale do Paraíba, na divisa do sul de Minas. Assim, que iniciava as férias, no primeiro dia mesmo, eu e minhas 03 irmãs pegávamos a estrada. Meu pai sempre designava algum funcionário a nos levar e buscar, pois ele e minha mãe não entravam de férias conosco.

Viajar pra lá tinha um significado de um “tudo novo”, um diferente bom. Éramos imersas nos costumes e na cultura daquele lugar e que me trazia uma sensação de pertencimento. A casa sempre estava cheia de primos e tios, com um sotaque arrastado q era uma delícia de ouvir. Tenho na memória o cheiro da comida apegada as raízes mineiras. Lembro do calor intenso mesmo no inverno. As noites reunidas aos vizinhos na calçada. A vista espetacular da Serra da Mantiqueira q cercava a cidade. Ah, e o costume de pedir “bênção”. Minha avó era uma benção! Algo q percebi somente na vida adulta. Cabocla sisuda, sem muito rodeios. Mas, muito cuidadosa com os 11 filhos, netos e noras.

Assim, que chegávamos na sua casa, nos acomodava num quarto q cada vez tinha algo novo. Um móvel ou uma roupa de cama, que sabíamos que era para melhor nos receber. Como uma boa cozinheira, fazia a receita preferida de cada uma de nós: pastel, rosquinha de nata, doce de leite e bolos. Determinado dia, resolvia nos levar ao centro e comprava calçados, roupa íntima e vestidos. Não que meus pais não podiam comprar, mas porque ela tinha o olhar do que nos faltava.

Era muito bom estar lá, mas em determinado momento, quase do nada ficávamos doentes. Lembro das minhas noites com febres altas, as vezes pela dor de garganta outras por uma estomatite ou mesmo furúnculos que limitavam a brincar. E nesses períodos sentia falta dos meus pais, saudades da minha casa. Pedia para ir embora. Era bom estar lá, mas sentia falta.

No último dia de férias, lembro da ansiedade para pegar estrada e a sensação de alívio quando o funcionário do meu pai chegava para nos levar.

Ao chegar em casa, sem muita intenção, fazia um reconhecimento daquele lugar ou talvez de mim mesma. Começava pelos cheiros andando pelos cômodos até que reencontrava meus pais. Matava a saudade, deitando no colo da minha mãe enquanto fazia tricô ou ficava abraçada ao meu pai em todas as oportunidades que podia ficar grudadinha. Naqueles momentos, a falta era preenchida pela presença. Por alguns dias, as vezes por algumas horas, mas logo a sentia novamente, viva e vibrante. E na verdade, ainda sinto. Porque a falta sempre está presente e sempre estará porque nunca poderá ser preenchida, pelo menos não completamente. Mas, é possível preencher parcialmente, como voltar para casa depois de umas férias ou ter os cuidados de uma avó atenta.

Todas as vezes q reconheci a falta e todo o mal estar que ela causa, me abriu possibilidades de fazer outras coisas. Já q isso me falta, então poderei fazer outras coisas que não seja isso que me falta. Escrever é uma delas. Na falta, as vezes não tem palavra ou letra para escrever. Mas, posso escrever um poema sem sentido ou uma ficção bem doida, até mesmo essas memórias tão vivas de como eram as minhas férias. E isso faz a falta não ser só existencial, mas fundamental, para me dar recursos para ser um ser faltante, mas que escreve.

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Belkis Pannaci
Comunidade da Escrita Afetuosa

Quando vim a essa Terra me senti um nada Quando pisei nela pertenci a Grande Mãe Terra Quando andei por essa Terra pus a escrever e me senti livre