A Escrita e o Autojulgamento

A escrita em minha família materna sempre foi presente. Meu avô, um imigrante italiano, era próximo dos livros e escrevia bem. Nos mostrava a beleza das palavras recitando poemas, lendo trechos de livros e artigos que ele fazia para o jornal local. Minha irmã é escritora, meu primo, meu filho e outras pessoas da família se aventuraram pelas páginas em branco, deixando bem ou mal suas palavras registradas. Na faculdade, escrever não era o que me desafiava, escrevia, não era elogiada, nem criticada, o que me parecia suficiente. A leitura sempre me atraiu mais que a escrita, então investia mais nos livros. Tive um cliente que era dono de uma revista de circulação regional, tinha uma coluna, escrita por um psicólogo, que resolveu que era hora de parar. Às vezes falávamos sobre os artigos e ele parecia gostar do que ouvia. Um dia ele me falou, na próxima revista o espaço é seu. Eu disse que não queria, nunca tinha feito isso. Escreva sobre o que quiser, não pode passar de 970 caracteres. Não tinha ideia de como fazer e nem que texto cabia neste número de caracteres. Resolvi escrever e não me preocupei, era a hora dele descobrir que deveria chamar outra pessoa. O texto tinha 3200 caracteres. Ele não falou nada, enxugou o texto. Mandou os dois para mim e disse: “Se você gostar, publicamos assim e você aprende a economizar palavras e ampliar as ideias”. Creio que foi a primeira aula de escrita que tive na vida. No outro artigo, eu mesma fazia os cortes, quando não conseguia, ele ria e falava: “ vou ver o que está sobrando. ” Vencida esta etapa, comecei a pedir para o meu filho, ler o que escrevia, corrigir o português e editar. Meu filho nunca julgou meus textos, isso me deu confiança. Fiquei escrevendo por uns três anos, comprometida com a revista, tentando fazer o melhor que conseguia. Um dia não quis mais, acho que cansei. Passei muitos anos sem escrever e sem ter vontade de fazê-lo. Uma vez ou outra escrevia alguma coisa a pedido de alguém. Na pandemia, o isolamento, o envelhecimento e muitos outros fatores pessoais e sociais me levaram para um estado de ansiedade, insatisfação e tensão, que poucas vezes experimentei. O turbilhão de emoções, a insatisfação com tudo, tensão e tristeza estavam atingindo níveis inaceitáveis. Saudades da liberdade, dos filhos, dos netos e principalmente saudades de mim. Isto me fez entender que eu precisava tentar achar palavras para traduzir a violência dessas emoções da última etapa da vida. Lidar com extremos, a vida brotando nos meus netos, a sociedade dominada pela morte, pelo medo, meu corpo envelhecendo e sonhos morrendo. Era muito para traduzir e resolvi voltar a escrever. Minha irmã escritora me indicou a comunidade e disse: “ a escrita precisa ser afetuosa”. Fiz minha matricula sem ter a menor ideia do que iria encontrar. Não sabia quem era Ana Holanda e nem o que iria acontecer ali. Saltei, precisava de um paraquedas. Confesso que fiquei assustada, tantas pessoas com histórias de escrita validadas socialmente, livros publicados e tantos caminhos diferentes. Tive medo, insegurança e julgamento. Isso não é para você, sem experiência e sem talento. Tentei fazer o exercício, insegura, com medo e me sentindo boba. A Ana leu meu texto e me validou internamente, poderia continuar tentando. A Comunidade me acolheu e descobri que todas lutávamos com os fantasmas da insegurança, do medo. Não estou só, então posso seguir. Relaxei e escrevia, ora com muita dificuldade, ora com menos. Aí veio o livro, uma experiência rica, mas que mexeu com os medos antigos. Meus textos não foram cortados, mas a fase da edição, com tantas angustias, discussões e insatisfações, incomodou. Não sentia nada daquilo e os retornos da editora, me aliviaram. Todas as emoções geradas na edição me fizeram questionar minha relação com a escrita. Deveria olhar para ela como um prazer pessoal? Era uma carreira? Precisa ter um propósito? Pode ser só para divertir? Quero continuar? Comecei a achar tudo que fazia ruim e travei. Precisei de muita reflexão para tentar tirar a escrita do compromisso e devolve-la para o prazer, para o lúdico. Claro que o autojulgamento, a cobrança, tem lugar privilegiado na minha história, assim como a necessidade de fazer melhor. São lutas e angustia, em muitas situações de vida que refletem na escrita, mas não a definem. Clarear os caminhos percorridos pelo meu inconsciente me ajudou a escrever este texto, que saiu diferente de tudo que tinha pensado. Pensamos ter um alvo, mas a flecha atinge onde precisa. Vamos ver quais portas abrirão, quais se fecharam.

Janisse Mahalem

Franca 20 de abril de 2024

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