A MULHER E A XÍCARA

Carmenpalheta
Comunidade da Escrita Afetuosa
3 min readJul 22, 2024

ou A MULHER SEM A XÍCARA

Esta até poderia ser uma comédia da xícara privada. Dos cacos que foram jogados na lixeira da sala de livros. O certo é que de comédia não tem nada. De improvável, talvez. Isso pelo fato de ser a voz de uma louça quebrada que conta sobre uma mulher desamigada. Acabei de inventar a palavra para me referir a minha proprietária que de amigos só tinha a mim. Dos livros também, mas isso que eles próprios contem, já que essa é a razão da existência deles na casa. Porque se é para ser improvável, incerto e nada crível, falo do lugar da xícara que fui. Sim, pois acabo de ser transformada em pedaços.

Conto a partir do fim. Porque o certo é que ela não quis misturar meus restos a outros lixos ensacados do quintal; nem aos do quarto; tampouco os da cozinha. Do corpo dela, menos ainda. Fiquei na parte da casa onde mais convivi. A sala de livros. Alguns fragmentos, porém, iam sendo encontrados a cada passo arrastado que ela dava desde quando deu fim ao último e quase único relacionamento. Os resquícios a faziam lembrar do quão quebradiças e frágeis podem ser as relações entre humanos. Ou a falta delas.

A verdade é que eu transbordava há tempos com o líquido escuro que ela todos os dias vertia para dentro de mim. Já não tinha alça onde ela pudesse me segurar com confiança. Havia partido pelo uso diário e a falta de cuidado para lidar com porcelana. Algo muito sensível para ela que dizia não ter tempo para delicadezas. Exemplo era a lasca na minha boca. Havia aparecido após uma manhã em que ela acordou, me viu sobre a pia ainda com nódoas do café do dia anterior. Na pressa pra sair, pôs-me embaixo da torneira que jorrou água como cachoeira. Acabou por me esbarrar na bancada de granito. Óbvio que me rompi! Ela se aborreceu consigo mesma. Eu nem lamentei. Nunca tive espaço para isso. Bastava-me estar aberta aos prantos dela até o entardecer.

Um dia acordou e ligou para alguém. Convidava para um café. Julgava finalmente que havia encontrado uma amiga. A pessoa nunca apareceu. Acho que desistiu quando ela disse que só tinha a mim. Uma única xícara! Que absurdo, deve ter pensado a mulher. Julguei ser do sexo feminino pois dificilmente homens são convidados para um café e o aceitam. Uma única xícara!, repetira a tal convidada. Sim, solitária louça onde ela despejava o mesmo café amargo da amarga vida que tinha. Que sina ! A dela e a minha.

Naquela manhã antes dos fragmentos na sala de livros, ecoou uma voz de dentro de mim na hora em que me levava à boca. Ela ficou com a mão pausada no ar. Não sabia lidar com sons que não fossem os da solidão. Mas eram dela. É que de tanto não se perceber nem falar com ninguém, mal entendia a si mesma. Em um ímpeto de medo e desespero, lançou-me contra a parede. Não tive saída. Nem alça eu possuía para me segurar ou me pendurar em algum quadro da cozinha. Se quadros houvesse, seriam minha salvação. As paredes eram nuas como a própria alma dela.

Fiquei em pedaços, pequenos e grandes, por todo lado. Na parede e no chão, ficou um lastro de café que parecia sangue derramado. Tudo manchado. Eu, estilhaçada. Sobre a mesa solitária de dois lugares, desocupada e muda, ela chorou. A mesa continuou inerte. Nunca havia na vida sido demandada para nada, senão ser suporte.

Espatifada, fui jogada na lixeira da sala, como disse no início. Local de onde assisti ensaios, poemas e choros. Estava diante do último capítulo da história da mulher sem amigos que me usou, babou, abusou, encheu e me quebrou. Eu, única companhia que tinha. Por dias, ela encontrava cacos pelo chão. Um com marca de batom vermelho. Ficou lá, por anos, sob a mesa.

#JULEX1

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Carmenpalheta
Comunidade da Escrita Afetuosa

Jornalista por formação e escritora em formação. Ambas por pura paixão pela palavra.