A pequena espanhola

Oriana Freire
Comunidade da Escrita Afetuosa
3 min readMay 24, 2024

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Na escola em que eu estudava na infância, todos os finais de ano eram celebrados com uma exibição de coreografias dos alunos em um teatro ou clube. Naquele ano de 1978 eu participaria do evento apresentando com um grupo de colegas, uma dança espanhola.

Seria o meu último ano lá e era importante que tudo saísse perfeito. Estava muito empolgada com os ensaios, apesar da minha timidez e dos meus nove anos. Adorava a professora, era amiga do meu par e a roupa ficaria linda. Seria um vestido de renda vinho com fitas aveludadas brancas no contorno dos babados da saia e das mangas. O cabelo seria preso em um coque com uma flor branca, o sapato preto envernizado, estilo boneca.

Não sei se foi a ansiedade da proximidade do dia, de repente comecei a errar os passos. Eu sabia que se isso acontecesse, seria substituída por uma colega, já que eu era o guia. Comecei a sentir também uma espécie de responsabilidade. Ser um modelo para os outros, na minha mente infantil era algo grande, afinal todos dependiam de mim. Como alguém que precisa andar em um espaço delimitado e não pode se desviar, eu não podia me perder no meio da dança. Porém, entrei em um ciclo vicioso: quanto mais errava, mais assustada ficava com o medo de falhar e de perder o meu lugar, e mais cometia erros.

Aquela bola de neve não parava de crescer, até que fui substituída. O que mais temia aconteceu. Foi o primeiro grande desafio que enfrentei na minha pequena vida de infância pacata onde eu era mais ou menos a versão tupiniquim de Pollyanna. Sempre alegre e feliz, achando tudo colorido. Meu mundinho caiu e penso que foi também a primeira vez na qual precisei buscar uma solução para um problema quase sem saída.

Depois de muito pensar, decidi falar com a minha mãe para pedir a professora de dança que me desse uma chance, pois não erraria mais. Aquilo foi arriscado, mas não vi outra opção. Até hoje não sei como consegui, mas talvez pelo fato da minha mãe ter tido êxito no que achava mais difícil, minha mente, de alguma forma, se convenceu de que a outra parte seria mais fácil, então não errei mais.

Sempre que olho a foto do dia da apresentação, lembro dessa história. É. Não foi fácil estar ali. Foi uma queda nos meus primeiros passos de dança. Possivelmente algo tão marcante que simplesmente desisti de coreografias. Em outras ocasiões, não conseguia juntar uma sequência de movimentos na minha cabeça, e concluí que não havia nascido para aquilo. A verdade é que não sei se me bloqueei ou se não tenho o menor talento para dança.

Apesar de ter sido um gesto de superação, até mesmo considerando a minha pouca idade, parece que do todo, parte não foi superado. Às vezes, me pego pensando se conseguiria, como nos filmes, fazer em uma festa, uma espécie de cena ao estilo “Dirty dance”. Mas…Nessa vida? Acho que não. Quem sabe “Embalos de sábado à noite”? Pior ainda. “Flash dance”? Nem pensar! Quando assistia Dança dos Famosos ficava imaginando se seria capaz de aprender as coreografias. De sorte que nem famosa sou.

Pensando bem, acho que existe um pequeno balé que posso executar, a famosa dança dos pãezinhos do filme “Em busca do ouro”, de Chaplin, já que só precisa de um pouco de jeito com as mãos, bom humor e repetição. Nada de sequências complicadas. Pura diversão. Quase um jogo do contente*.

Oriana Freire — Exercício 4 — Mato/2024

*Jogo do contente- Do Livro Pollyanna. O Jogo do Contente foi inventado pelo falecido pai da protagonista para que ela encontrasse diariamente motivos para sorrir, enxergando sempre o lado bom das situações. Com esse pensamento ela enfrenta as dificuldades da vida e provoca os adultos a seguir pelo mesmo caminho, sem nutrir mágoas ou tristezas profundas.

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Oriana Freire
Comunidade da Escrita Afetuosa

Amante da literatura. Viajante das crônicas. Devoradora dos livros. Autora dos blogs: Viajando na Crônica e Viajando e contando