A vida do vovô

Marina C. Leonel
Comunidade da Escrita Afetuosa
3 min readAug 28, 2023

-O vovô era maçom?! — Exclamou Henry, surpreso, segurando um envelope de papel pardo amarelado e desbotado pelo tempo. No lacre de cera se destacava um triângulo com um olho no centro.

Naquela caixa haviam mais cartas, fotos e ornamentos amplamente marcados tanto pelo símbolo do triângulo quanto pelo clássico compasso sobreposto por um esquadro. Henry olhou novamente para o envelope aberto em sua mão e puxou a carta. Na primeira página se lia “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”, seguido pelo nome completo do falecido avô. Não havia dúvida.

-Vovô era maçom — repetiu em voz alta, só para ver se, dessa vez, era mais fácil de acreditar.

-Por que ele nunca falou nada? — Rose estava ainda mais incrédula que Henry, revirando a caixa freneticamente. — Quer dizer, não é como se a maçonaria fosse um segredo guardado a sete chaves. Ele poderia ter mencionado algo.

Já se passava pouco mais de um mês desde o falecimento do avô das crianças. A casa havia ficado trancada durante todo esse tempo e estava escura, mofada e empoeirada até o teto. A mãe, que ainda digeria o luto pela perda do pai, acordou determinada a colocar a limpeza do lugar em dia. Arrancou os dois filhos da cama enquanto ainda estava escuro, e os levou consigo, ordenando que tirassem dos armários tudo que encontrassem pela frente.

O que a princípio parecia ser uma tarefa dura e maçante, rapidamente se tornou uma série de perguntas sem resposta. Cada armário aberto, gaveta esvaziada e poeira removida criava um abismo de distância entre eles e o avô. As crianças simplesmente não sentiam mais que o conheciam.

O avô foi um homem muito calado e reservado durante a vida. Simpático, bem afeiçoado e de poucas palavras. As conversas com os netos se resumiam a perguntas sobre os estudos e se estavam sendo obedientes a mãe. Sabiam que ele era siderúrgico e trabalhara 20 anos na mesma empresa. Um homem bom, simples e totalmente enfadonho.

Só que a limpeza da casa revelava histórias e objetos que de forma alguma combinavam com os cardigãs de lã cinza sem graça espalhados pelo armário. Haviam fotos de uma viagem para a África. Uma bola de futebol americano autografada. Um livro de receitas com mais de 500 páginas escrito na caligrafia do próprio avô. Botas de cowboy. E, aparentemente, ligações com a maçonaria. Quem era aquele homem?

-Não dá para acreditar! Henry, você precisa ver isso — chamou Rose, enquanto investigava um baú de madeira escuro e desgastado.

Henry se aproximou e recebeu de Rose um objeto de metal prateado e comprido. Uma flauta transversal. Dentro do baú haviam centenas de partituras e algumas fotos da orquestra. Reconheceram o avô na imagem em preto e branco, de terno, segurando a flauta.

-Meu Deus, Rose. Por que você acha que vovô escondeu tudo isso da gente?

-Não sei. Mamãe sempre disse que ele nunca mais foi o mesmo depois da guerra. Talvez ele só tenha mudado.

Henry estava atônito. Era inacreditável o quanto não conhecia do próprio avô. Olhou para Rose em seu vestido xadrez vermelho e branco, sentada de pernas cruzadas ao lado do baú. Quantos segredos haveriam em seus 11 anos? E sua mãe? Quanto ele desconhecia de sua história?

-Vem Rose, vamos falar com a mamãe.

Henry segurou na mão da irmã e juntos deixaram o quarto, com determinação em cada passo. Ansiosos por cada resposta que permanecia escondida sobre os cantos empoeirados daquela casa.

Esse texto foi escrito para a Comunidade da Escrita Afetuosa
Poente — módulo 3 exercício 4
Escrever um texto sobre relação a partir do vídeo de lavagem de tapete

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