ACORDA
Quando meu corpo despertou voluntariamente hoje, dando provas da transformação que nasceu em mim nestes tempos em que a maturidade me abraça, investi uns minutos pra lembrar os meus acordares de vida toda.
Nunca foi fácil, em verdade. Sabe se lá pela herança genética ou uma preguiça cultivada, fato é que o despertar provocado jamais me foi algo prazeroso.
Primeiro porque a escola que me acolheu a infância despertou em mim muitas sensações, exceto o desejo de lá estar. Acho até que o verbo acolher nem era conjugado por ali. Isso acinzentou minhas manhãs, mesmo nas de primavera.
Muitas voltas do ponteiro depois, o trabalho. Daí pra frente, quem dá as cartas são as obrigações mais severas do mundo adulto. A gente passa a despertar para as dificuldades da vida, não mais para as manhãs.
Lembro-me de certo período remoto em que, dado o sofrimento para executar a tarefa, não sei de onde veio, nem por intermédio de quem, um despertador surgiu ao lado de minha cama. Uma peça linda, que ostentava seus algarismos romanos em itálico e negrito bem como suas proeminentes sinetas redondas e metálicas, entre as quais se encaixava um pequeno martelo de ação dupla lateral. Posso ouvi-lo agora se quiserem (mas não a meu desejo).
Ele ladeou meu sono por algum tempo, não sei ao certo quanto. E me acordava pontual, como deveria. Acordava, mas não me despertava nenhum prazer. Só acordava mesmo, assim como as britadeiras e sirenes que eventualmente se atreviam em nossos arredores.
Ainda hoje sigo acordando todas as manhãs. E cada vez mais cedo e espontâneo, na proporção do tempo que a natureza me permite em vida. Mas despertar mesmo, para a felicidade do reencontro com a vida, com meus amores e meus pássaros, o que me faz valer a pena interromper os sonhos mais prazerosos, é o som baixinho e aveludado e disparar:
… “acorda amor”…