AO MENOS UMA CARTA

Maíra Matrone
Comunidade da Escrita Afetuosa
4 min readApr 5, 2023

Lú,

Já estamos separadas há 27.216 horas por 6.880 km e eu ainda não te escrevi nem 1 carta. Culpa da tecnologia, a que você é tão resistente. Essa história de whatsapp matou a surpresa saltitante de receber uma carta pelos Correios. Correios, coisa tão antiga quanto a nossa amizade de 35 anos. Devemos estar amarradas pelo afeto há pelo menos 450 anos, para quem acredita em outras vidas. Você sabe que acredito desacreditando, né? Contudo, a magia do nosso elo é uma das poucas coisas que me dão fé na vida após a morte. De onde vem essa ligação? Reflito, aceito, agradeço e amo.

Os assuntos são muitos. A vida é um rio apressado. Luca e Marina já são adolescentes. Luca pela idade e Marina pela precocidade. Assim como éramos, quando nos conhecemos, estão cheios de certeza e tem uma vida inteirinha pela frente. Não sei como você se sente com a Clara, mas eu pareço uma instrutora de auto-escola. Já sei dirigir, sei o caminho, sinto o cheiro quando se aproxima um motorista imprudente na minha traseira. Na maioria das vezes, sei de cor como agir, mas não posso interferir na condução do meu aluno. Não é irônico o fato de termos o mapa na mão e não poder conduzi-los? Vire à esquerda, siga até o Km 60, pare para abastecer somente em postos credenciados, e não faça como eu, não gaste muita gasolina nesta estrada. Andamos no banco do passageiro sem poder pilotar. Observamos falta de atenção e dificuldade com as balizas, é imperativo acreditar nas aulas que foram dadas antes do teste prático. Reza e confia, já dizia minha mãe. Lembra?

Além dos filhos, tem a idade. 50 anos, Lú. Já temos 50. Como você se sente? Eu sinto saudades das nossas sessões de terapia ao vivo e em cores. As telas nunca vão dar conta dos encontros de carne e osso. Ah como seria incrível constatar que estou sofrendo com o envelhecimento. Só as nossas conversas são capazes de tirar com saca-rolhas as minhas neuras mais profundas. Não é possível que eu não esteja abalada, como aparentemente deixo transparecer. Sim! Há muitos prós. O amadurecimento traz confiança. Já foram tantos tombos que aprendemos a levantar em piruetas. Acontece que minha cabeça não tem 50, já o meu corpo me avisa aleatoriamente, ora com fisgada no ciático; ora com dor na lombar, que os anos se passaram. Em seguida, elaboro teorias sobre a finitude, e sou sugada por uma nostalgia irresistível. Toda a minha vida passa como filme diante dos meus olhos, e me lembro que tenho menos tempo do que já tive. Pensamentos sobre a morte se tornam mais frequentes. É a vida. E como anda a sua vida?

Sei, seu coração anda apertado. Quem ama um país, como nós amamos, sente S A U D A D E. Palavra portuguesa com gostinho brasileiro. É tudo diferente. O cheiro da terra, a grossura da chuva, a paçoca e o pastel, o toque, a visita, o tambor. A música é um capítulo a parte, pelo menos para nós. Por conta da mesma tecnologia que nos priva de cartas, ela pode ser ouvida em qualquer continente. O que não ajuda é a paisagem. Nem sempre um samba combina com hambúrguer e french fries, tava mais para uma feijuca com caipirinha. Mas a gente vai levando, a gente vai levando, a gente vai levando essa rima. É dor pungente lembrar-se de bolo de laranja, cervejinha com os amigos, churrasco e brasileiros. Como os brasileiros nos fazem falta! Gostam de se criticar, sem saber que são o suprassumo da fruta. Será que vai chegar um dia que o complexo de vira-lata vai para lata de lixo? Veremos… Ou não veremos? O Brasil é essa salada com frutas mal cortadas, cheias de fiapo, com caroço no meio, nem sempre tão fresquinha. Hummmm, mas tem tanto sabor. Açaí, sapoti, abacaxi, laranja, acerola, cacau, pequi. Há que se aperfeiçoar a receita, isso é certo e notório. Mas a verdade é que só pela Bahia, o Brasil já valeria a pena. Concorda?

Não quero atiçar sua saudade, como disse o Chico pro Augusto Boal, naquela carta em forma de canção. O Boal não tinha opção, estava exilado. Você tem. Por mais difícil que seja, por todos os contratempos da vida, você sabe que resolvendo uma pendência aqui e outra ali, você pega um avião e mata a tal saudade. Mergulha em um balde de pão de queijo, dança samba e forró, abraça e beija. E volta. Respiro.

Agora respira. Logo esse tempo vai chegar. E quando chegar vê se faz uma escala no Rio, e na hora do pouso, aperta o play do aplicativo para tocar Samba do Avião do Tom. Sua alma vai cantar.

Contando os minutos para te encontrar e cantar as mesmas canções que cantávamos nos tempos que ao invés de frequentar as aulas, pulávamos o muro da escola para nos esconder no parque. Para quê? Para cantar e falar da vida.

Pensei em te enviar esta carta pelos correios, mas a ansiedade, dos nossos tempos, não permitiu. Te envio por esse app frio e sem textura, com todo meu amor, Maíra.

#auroramod2ex3 #carta

--

--

Maíra Matrone
Comunidade da Escrita Afetuosa

Um caldo de histórias vividas e lidas. Autora do @cantehistoria, perfil que conta a História através da Música.