Aquela noite

Bruna Bittencourt
Comunidade da Escrita Afetuosa
3 min readFeb 27, 2024

FALA, FALA, FALA, ele me dizia, me olhando de um jeito que me fazia tremer dos pés à cabeça. Você já sabe o que você quer, só não tem coragem de me dizer. Eu me sentia pequenininha, menor. Uma criança encurralada levando bronca do pai. Aquela voz grossa, aquele timbre que dá medo, aquela raiva descontrolada. Você está me fazendo de trouxa, já sabe o que quer e fica aqui me enrolando. Eu já tinha ouvido essa frase, anos antes, em outra relação, e aquilo me pegou em cheio. Era verdade. E de novo. De novo, meu Deus, de novo? Eu não sabia o que fazer. Eu não tinha mais para onde escapar. Eu não tinha para onde fugir. Fala baixo, não grita, o João está dormindo. Eu não quero que ele acorde, eu não quero que ele ouça nada disso. Não tem porta aqui, ele pode acordar a qualquer momento. Então fala, fala, FALA. Ele insistia.

Eu não quero mais estar casada.

Eu não quero mais estar casada.

Eu não quero mais estar casada.

Repeti três vezes, com a voz um pouco menos trêmula e um pouco mais firme em cada uma delas. Eu estava repetindo para mim mesma, eu sabia disso. Ganhando força em cada uma delas. Era a primeira vez que eu tinha coragem de falar isso em voz alta. A cada vez, ele dava um passo atrás. Cambaleando, desacreditado. Tive medo que ele desmaiasse. Achei que estava quase. Até que se sentou em uma poltrona, do lado do berço do João. E começou a chorar. Copiosamente. Sem parar. Ele não podia acreditar que eu tinha mesmo dito aquilo. Pronto, falei. Saiu. Eu não sei como, mas saiu.

Aquele quarto escuro de hotel, o João dormindo ali do lado, tão quietinho, tão pequenininho… O choro que não conseguia sair direito (o meu, não o dele). Eu puxava, puxava e não vinha nada. Eu preciso respirar, eu preciso respirar, eu dizia. Abre essa janela. Vamos pra lá, vamos pro outro lado. Nessas horas, só uma mãe sabe o tamanho do desconforto que a gente engole pelo filho. Eu não queria que ele acordasse. Eu não queria que ele testemunhasse nada daquilo. Ele não iria entender, eu sei, mas eu não queria. Ele mal sabia falar, mas as crianças sabem sentir. Muito mais do que a gente, e eu sempre acreditei nisso. Se ele acordar, ele vai perceber. Eu só queria que ele não acordasse. Eu não queria que ele visse. Eu não queria sentir que causei algum mal a ele. Mais um, eu pensava. Eu só preciso respirar, preciso respirar. Preciso me acalmar. Será que ele está ouvindo, mesmo dormindo? Será que inconscientemente ele está absorvendo tudo o que está acontecendo aqui? Será que vai ficar algum registro na memória dele? Eu só queria que ele dormisse, quietinho, como se nada estivesse acontecendo. Vamos pra lá, abre essa janela.

Inspiro, expiro. Inspiro, expiro. Inspiro, expiro. Inspiro, expiro. Choro. Choro. Choro. Eu quero gritar, mas não dá. Eu não sei nem direito como viemos parar aqui. A gente estava no casamento da Cacá até poucas horas atrás, como foi mesmo que tudo isso aconteceu? Do nada? Eu não me lembro. Inspiro, expiro. Inspiro, expiro. Fecho os olhos. Choro. Choro. Choro. Ele ali do meu lado. Na janela, também tentando pegar um ar. Sem saber o que fazer. Você está bem? Ele me perguntava. Está tudo bem? Uma dor no peito insuportável. Doía. Fechava. O ar não entrava de novo. Acho que a minha pressão vai cair, eu não sei o que está acontecendo. Doía, mas eu não podia gritar. Inspiro, expiro. Inspiro, expiro. Inspiro, expiro. Dor no peito. Perna bamba. Mãos tremendo. Olho para o outro lado do quarto, ele continua ali, quietinho no berço. Dormindo. Ainda bem. Obrigada. Obrigada. Obrigada. Choro mais um pouco. O pior já passou, acho que ele não vai mais acordar.

Fev/ex3

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