Ausência

Sonia Marques
Comunidade da Escrita Afetuosa
3 min readNov 25, 2023

Alvoradamod3ex1 — Comunidade da Escrita Afetuosa

convido a ler o texto ouvindo a música Cryind Alone.
harmoniza de forma interessante. Experimente!

fonte: pixabay.com

Naquela tarde fazia sol. Depois de dias chuvosos intermináveis. Desejosa de luz, calor e aconchego, caminhei pelas ruas. Vagarosamente. Por fim, sentei-me na pracinha. Avisto uma menininha correndo por entre os brinquedos. Ouço as risadas do meu irmão. Estávamos num vai e vem intenso na gangorra, ao lado do conjunto de prédios onde morávamos, na Rua Eurico Lara, em Porto Alegre. Alternando uma escorregada, um balanço radical ou o desafio de percorrer o trem feito de canos gigantes de cimento. Nesta época, mamãe nos acompanhava. Ficava horas sentada fazendo suas costuras, crochês ou tricôs. Entre uma olhadela e um sorriso…
_ “Cuidado vocês dois.” _ “ Ei, não corram deste jeito.” _ “Filha, vai machucar o joelho novamente.” Sempre fui cai-cai.

Num piscar de olhos, volto à menina que brinca sozinha no parquinho. Agora é assim que chamamos a pracinha de outrora. Estimo que tenha uns 5 anos pela sua estatura. Corpinho miúdo, pele branquinha. Cabelos na altura dos ombros, levemente cacheados. Desta distância, não consigo ver a cor dos seus olhos. Uma mulher está sentada próxima. Jovem. Talvez nem 30 anos. Esguia, pele clara. Cabelos compridos, loiros e lisos. Pela minha lógica, a acompanha. Será a mãe? Ainda não sei.

A menininha corre do balanço ao trepa-trepa. Sobe. Desce. Curioso é que seu rosto não expressa alegria. Nem tristeza. Me parece apático. Corre em direção ao escorregador, sobe a escadinha. Olha em direção a mulher que
está absorta na tela do seu celular.
_ “Mãe? Mãe?” A mulher não levanta os olhos.
_ “Mãe? Olha onde eu ? Olha mãe!” Sem qualquer resposta, desiste.
Permanece um tempo em cima do brinquedo. Quieta. Olhando fixamente para o chão a sua frente. Escorrega por fim. Fica lá.

_ “Ei, vocês dois, não fiquem nesse puxa-puxa. Isso nunca acaba bem.” Olham na minha direção. Simultaneamente. Cúmplices, correm para a gangorra.
_ “Mais rápido mano!” Provoca o irmão, que acelera o vai e vem, fazendo-a quase voar. Riem, se divertindo no parquinho que costumávamos frequentar, próximo ao nosso apartamento em Floripa. Entre uma olhadela e um sorriso… Volto a ler a revista que comprei no caminho. Suspiro. Envolvida naquelas deliciosas lembranças.

A menina veste uma calça comprida de moletom creme, blusa de manga longa azul celeste. Sob o sol estava quente. Tira o casaco cinza escuro e, com desenvoltura, o amarra na cintura. Me impressiono com sua habilidade. Talvez já tenha prática. Necessária. Arregaça pernas e mangas e senta-se na caixa de areia mais à frente do escorregador. Pernas esticadas. Cabeça baixa. Cabelos na frente do rosto. Balança os braços para frente e para trás, enquanto suas mãozinhas afagam os grãos de areia. Assim fica por um logo tempo. Me pergunto, o que será que ela está pensando? O que estará sentindo? Imagino que sinta-se só. O parquinho por si não a diverti. Nem a companhia de sua mãe é de fato uma presença.

Levanta delicada. Passa as mãos nas calças para tirar o excesso de areia e corre em direção a mãe, que continua na mesma posição.
_ “Mãe? Me empurra no balanço?”
_ “Mãezinha? Vamos brincar lá no balanço?” Nada.
A menininha toca suavemente no rosto da mãe, enquanto fala:
_ “Mãe?”
A mulher, finalmente, reage.
_ “Tira essa mão suja de mim! Tá louca! Vaza!”
Esbraveja e a devora com o olhar. Num tom de voz alto e ríspido. Ela recolhe a mão imediatamente. Com os olhinhos arregalados e o rosto vermelho, corre para perto dos balanços. A mãe retoma sua posição frente ao celular. A menina, apoiada no suporte do brinquedo, buscando amparo, olha fixamente para o vazio. Nenhuma lágrima.

Diante da atitude grosseira de sua mãe, ela parecia assustada. Contudo, não surpresa. Quantas vezes já viveu aquela situação? Nos altos dos seus 5 anos, quanto tem andado só? Falando ao vento. Sem respostas. A quanto tempo tem brincado só? A quanto tempo vive só?

Sem ser notada.
Deixo a cena.
Sem respostas.

fonte: pixabay.com

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Sonia Marques
Comunidade da Escrita Afetuosa

Aprendiz de escritora - @sousoniamarques Compartilhando experiências - formada em Adm Florianópolis/SC