Bananada

Lorena Andrade
Comunidade da Escrita Afetuosa
3 min readMar 21, 2024

Entrou no ônibus pela porta do fundo. Em meio à fúria das ruas e o cansaço dos dias, penso ser uma gentileza do motorista deixar que vendedores subam de graça para vender sua mercadoria. O ônibus cheio impediu o rapaz de andar muito. Ficou parado nos degraus em frente à porta e de lá mesmo gritou: “Olha a bananada!”

Ao contrário do condutor, nesse dia eu não estava tão gentil. Era fim de tarde, início do pouco de dia que ainda me restava para descansar. Saí do trabalho e entrei no ônibus rezando para achar um lugar livre. Estava lá, um dos últimos assentos disponíveis. Coisa rara. Ao sentar, joguei no banco o peso do dia todo. De todo dia. Diferente da maioria deles, porém, não coloquei o fone de ouvido. Dessa vez, a viagem seria sem música. Eu queria o silêncio absoluto.

“Olha a bananada!” — gritou mais uma vez o vendedor. Foram poucas paradas até o meu desejo de silêncio cair por terra. Não que eu tivesse muita esperança estando num ônibus cheio às 17:30h no centro de uma capital. O rapaz subiu com seus doces e sua voz estrondeante. Acho que a potência e projeção de voz dos vendedores de rua é algo que deveria ser estudado por atores de teatro. A deste homem, então, poderia ser escutada num estádio. Mas a plateia de hoje não pareceu muito interessada na estrela do dia, a tal da bananada. O rapaz gritou ainda algumas vezes, mas seu pedido de venda não foi correspondido. Resolveu, então, conversar com os passageiros próximos. Sua voz dominava de tal modo o ambiente que eu só sabia que o moço conversava com alguém pelo aparente silêncio que se fazia entre uma fala e outra dele. O outro com quem o diálogo se estabelecia existia apenas entre os respiros daquele cujo discurso tomou conta da lotação.

Deixei que meus planos de silêncio voassem pela janela. A voz do vendedor não me impediu de ouvi-lo; mas o que ele falava me instigou a escutá-lo. Ele contava sobre sua rotina pesada de acordar cedo, pegar a mercadoria e vendê-la de sol a sol. Tinha uma meta por dia: antes de fazer 150 reais, não ia embora para casa. Depois de descontar o valor do produto, juntava o lucro e dava para a irmã guardar. Contou que ela era sua contadora. “A gente não aprende quando novo, tem que aprender quando velho”, disse ele, justificando que só agora estava aprendendo a controlar seus gastos. No fim de semana, pegava com ela um dinheirinho para se divertir. A voz ganhava um tom de malandragem. Ele também era filho de Deus.

Olhei pra trás para tentar ver o rosto dessa pessoa que eu sequer sabia o nome. Queria que ele ganhasse forma na minha mente. Só consegui, no entanto, enxergar a caixa grande de plástico com os doces cuidadosamente embalados e arrumados que ele trazia. Frustrada por não ver seu rosto, decidi fazer da voz o seu corpo inteiro. Era cabeça, tronco, pés e mãos desenhados em notas sonoras. Apesar da fala forte e firme, ele trazia uma doçura singular. Um afeto áspero de quem não tem uma vida fácil, mas não se deixa dobrar. E mais ainda, não quer passar para frente sua dor. Voz com gosto de bananada. Ele contou que seu sonho era “ser dono de uma firma”. Qualquer uma. E contratar uma pessoa para trabalhar com ele e poder ensinar o que sabe. Acho corajoso quem conta assim seus sonhos ao vento. Solto dentro de um ônibus, tenho esperança que esse desejo ande muito longe.

Chegamos na Estação da Lapa, ponto final. Todos descem, inclusive meu personagem favorito da viagem. Ele se perde em meio à multidão e não me permite que eu tente vê-lo pela última vez. Segui meu rumo. Caminhei em direção ao metrô, a segunda viagem do dia. Mas não estava mais só. Não comprei sua mercadoria, mas ganhei de graça sua voz. Com ela, seu corpo-música e seus sonhos de uma vida nova para si e para os seus.

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