Caco de Vidro

Bruno Tavares
Comunidade da Escrita Afetuosa
3 min readAug 2, 2023

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Fonte: Jakob Owens

Sabe a prateleira de vidro? Aquela que sustenta os temperos ali na cozinha? Isso, essa mesmo. Dia desses bati lá com uma panela. Sem querer, claro. Acabou trincando. A prateleira, não a panela. Não sei de quem foi a ideia de ter prateleira de vidro pra segurar temperos. Coisa de apartamento alugado, você sabe. Pior que isso só o chuveiro na pia, pra lavar a louça com água quente no inverno. Vai vendo.

Mas voltando à prateleira, ela trincou. De fora a fora. Não quebrou, mas trincou. E caiu um caquinho. Micro caco de vidro. O problema é que ele caiu na tigela de macarrão do almoço. Sim. Catástrofe. Não, não joguei o macarrão fora. Comi ele todinho. Não vi que o tempero final foi vidro. O caco? Eu engoli. Sim. Parece coisa de filme, de novela, de seriado enlatado de TV. Foi na última garfada. Juro. Comi com gosto e nas últimas mordidas notei algo duro ali no meio. Achei que era um galho de ervas finas. Porém, era mais duro. Tirei da boca pra ver o que era.

E vi brilhar, um caquinho de vidro entre meus dedos. Congelei. Não sabia o que fazer. O tempo se arrastou, passaram-se horas, mas sei que foram segundos. Entendi o que houve. A prateleira, a panela, o trincado… tinha vidro na comida. Corri até a cozinha e coloquei o pedaço de vidro na prateleira. Encaixou direitinho. Porém, faltava um pedaço. O caco não estava inteiro. Faltava um pedaço de vidro ali naquela prateleira. Faltava, porque eu tinha engolido. O prato estava limpo, a panela vazia, o balcão higienizado. Não tinha como encontra-lo, mas eu sentia que estava em mim.

Paralisia total do lado de fora. Extrema agitação do lado de dentro. O que fazer? Correr pro hospital? Estou sem convênio. Vou ficar horas na fila da UPA. Melhor então ficar em casa e observar os sintomas. Mas, quais sintomas? Com um Google descobri: dor de garganta, dor de estômago, sangue nas fezes. Dai pra pior. Aquele comichão na garganta era dor? Será que engolir caco de vidro era igual a engolir espinha de peixe? Com espinha de peixe tem que comer farinha crua, pra ajudar a descer. Acho que não era a mesma coisa. Decidi beber uma taça de vinho. De uma vez. Gute, gute, gute.

Vinho ajuda? Acho que não. Se tivesse que tomar soro no hospital, agora não iam conseguir pegar a veia. Quem bebe fica com a veia parecendo macarrão molhado. Quanta ironia. O comichão na garganta estava mais forte. Subiu uma vontade de chorar, junto com um arroto de vinho. Coceira na pele, angústia. Acabei de ter bebê e agora vou morrer porque engoli um caco de vidro. Como é que iam explicar isso pra minha filha? Papai morreu porque não viu que tinha vidro na comida. Que jeito burro de morrer. Vou ter nó na tripa, perfuração no estômago. Vou gritar na hora de evacuar. Dos cenários, só os piores.

O que eu fiz? Decidi dormir. Afinal, se ia partir, que fosse dormindo. O incômodo na garganta? Estava pior. A cabeça girando por conta da taça de vinho. Deitei. Dormi duas horas seguidas. Acordei sem babar sangue, sem me esvair em merda vermelha. Só com a cabeça doendo. Mas fiquei preocupado e pensando… será que já chegou no estômago? No intestino? Vou beber bastante água pra descer suave.

E no bebe que bebe de água, fui muito ao banheiro. Mas nada do caco sair. Não teve dor de barriga, não teve nó na tripa, não teve cocô com sangue. Teve muito xixi por conta da água. No fim, tenho certeza que engoli o caco de vidro. Mas acho que o macarrão parafuso fez um bolinho alimentar e ele ficou ali no meio. Sem me fazer mal.

Não morri, não vão ter que explicar pra minha filha que o pai morreu por almoçar uma pasta com tempero de vidro. Vida que segue. É bom eu pensar num convênio porque quando a gente menos pensa, ai é que precisa. A prateleira? Não caiu. Continua lá trincada, faltando dois pedacinhos de vidro: um que eu quase mastiguei e o outro que eu engoli. Semana que vem ligo para um vidraceiro. Você tem o contato de alguém de confiança?

(Mergulho Profundo — Escrever a partir de uma pequena destruição doméstica — Aurora, módulo 1)

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Bruno Tavares
Comunidade da Escrita Afetuosa

Um publicitário que adora viajar, seja nos livros, nos filmes ou na vida real