Giovanna Acioly
Comunidade da Escrita Afetuosa
3 min readJun 27, 2024

--

CARIMBADO

Imagem do site Dreamstime

Cuidadosamente, engomou o uniforme, colocou no cabide, pendurou no trinco da janela de vidro. Foi deitar.

Tons róseos invadiam o quarto quando Arnaldo acordou. Tomou um banho, se vestiu. Enquanto abotoava um a um os botões até chegar no que se encostava em seu pescoço, sentiu a quentura dos primeiros raios de sol passar do tecido para sua pele. Aquele era o jeito de dar boas-vindas à segunda-feira, de comunicar aos poros e à alma que mais um dia de labuta os aguardava.

Atravessou as duas ruas que o separavam do trabalho à pé. O bico do sapato preto guiando o homem pelo caminho da retidão. Bom dia! Ouviu do vizinho de nariz adunco. O novo morador insistia em se aproximar, enquanto aguava as plantas. Ora, se eu tenho tempo pra isso! Um desocupado, pensou ao virar o copo de café em um só gole, como pretexto para a fala indisposta.

Depositou as chaves de casa e o celular na janelinha de vidro, atravessou a porta giratória, seguiu direto para sua cadeira. Os dias eram curtos para que desse conta do tanto de gente que teria que ver. Passavam duzentas, trezentas pessoas pelo seu guichê e o homem mal se mexia. Quando as costas doíam, se imaginava com um fio a puxar-lhe a cabeça pra cima. Logo se recompunha. Se as nádegas pesassem, dava uma levantadinha com a perna direita, depois com a esquerda. Tudo se resolvia.

Mariela, a senhora da cabine sete, era muito esforçada. Em agosto passado não roubou-lhe o primeiro lugar por três turistas apenas. Você sabe o que é perder por três, três carimbadas a menos no papel?! Pobre coitada!

Próximo! Queixo pontudo, orifícios do nariz abertos como os de um porco, um vinco se formando na parte superior esquerda da boca. Tum! Pode seguir! Era assim, com olhos de lince, que unia o retrato no passaporte às feições diante de si. Acaso um lábio mais fino que o devido ou um arquear de sobrancelhas o intrigasse, logo apertava a luz vermelha. A pessoa seria investigada minuciosamente na salinha. Não tinha tempo a perder.

Teve um dia em que o braço direito formigou tanto, que Arnaldo levantou. Já ia dar uma alongada, ouvir as recomendações do pessoal da ginástica laboral, quando a vista cruzou com sua fotografia. Há um ano e dois meses sua imagem era praticamente o único adorno naquele setor cinza. No dia do registro, passara um gel comprado na loja de cosméticos do bairro. Os cabelos brilharam tanto quanto o orgulho que o possuía. Sentiu-se tão bonito, que adotou o produto na rotina. Terminar o dia com os fios intactos, no mesmo estado em que entraram no serviço, era como um sinal de que com ele funcionava tal qual. Saía disposto, inteiro, a despeito de horas e mais horas sentado, apenas levantando e abaixando o pescoço e quase obsessivamente carimbando papéis. Rapidamente se recompôs. Sentou, mudou o carimbo para a mão esquerda. Desajeitadamente, bateu um, dois...quatro passaportes.

Pou! Ouviu um estouro.

Ao abrir os olhos, o mesmo nariz adunco da manhã. Dessa vez, o encarando de perto. Boa tarde! Já ia se irritando com a abordagem do vizinho intruso, todo fantasiado em um vestido branco, quando sua vista se ampliou. A sala era tão morta quanto à sua, com a diferença de que as paredes eram claras. Olhou para o lado. Um líquido entrava em suas veias. Você teve sorte! Não foi dessa vez! O médico iniciou a conversa. Aliás, o monólogo. À medida que se dava conta de que havia infartado, uma tristeza profunda calava o espírito de Arnaldo. Não conseguiu perguntar, contestar, falar palavra alguma, ainda que fosse apenas para se certificar de que estava realmente vivo.

O doutor se dirigiu para a janela, abriu as cortinas, quem sabe trazendo algo de verde para o horizonte o paciente não se animaria? Mas seu semblante não mudou. Alheio à tentativa, o olhar era perdido. De repente, balbuciou: Quando poderei voltar ao trabalho? Daqui a seis meses. Uma lágrima escorreu pela face, enquanto nutria um só pensamento. Cabelos encaracolados, bochechas levemente caídas, olhos miúdos. Pendurada em seu lugar, Mariela. Melhor servidora do mês, carimbado sob seus olhos.

Junex2

--

--