Carnaval era meu, meu.

brizam
Comunidade da Escrita Afetuosa
3 min readMar 30, 2023

Acho que vocês já leram aquele texto de Clarice, a Lispector: Restos de Carnaval. Tem um trecho, que me toca muito profundamente, porque é o que sempre senti na no corpo e na alma. Diz assim:

“E quando a festa ia se aproximando, como explicar a agitação íntima que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu.”

Isso é tão verdadeiro, tão real! A cidade se transforma, sabe? Como que por magia, total e completamente. E não é só Recife, não! Nem o Grande Recife. Vai muito além da capital. Toma conta do Litoral ao Sertão. Segue pelas estradas e chega as cidadezinhas, municípios, vilarejos…

Não sei se quem vive longe de tudo isso, entenderia. É uma “coisa” que toma a gente, sabe? Que de repente, se vê comprando fantasia, adereço, lantejoula, glitter, maquiagem…

E a medida que os dias de folia vão chegando, você começa a ver mais e mais pessoas se vestindo pra festa, como se assim como o Recife, também explicassem para que tinham sido feitas. Um brinco maior aqui, uma flor no cabelo ali, roupas coloridas em todo canto!

Herdei do meu pai o amor pelo Carnaval. Sim, amor. Não há outro modo de nomear. Ir pro Galo da Madrugada, ficar na calçada, junto daquele povo todo, sentindo o coração pulsar no ritmo do trio elétrico é algo inexplicável, que só vendo, só vivendo.

Mas, houve um ano em que achei que não ia conseguir. Minha vida estava de cabeça pra baixo, o Carnaval não fazia qualquer sentido naquele momento. Eu só queria sentar e chorar. Claro que ele me mandou mil mensagens: “acordei”, “galooooo!”, “viva!”, “tô indo já, já”, “vai mesmo não?” e o peito apertando a cada Whatsapp recebido.

Meia-hora depois que ele saiu, vesti minha roupa de guerra — sim, porque o Galo da Madrugada é uma guerra — faixa colorida, colares coloridos, maquiagem colorida, cílios coloridos. Era como se, daquela vez, precisasse sentir, essa energia, vindo de fora pra dentro, não de dentro pra fora, como de costume.

Quando cheguei lá, meu pai estava no meio do povo, rindo de tudo, feliz da vida, com a fantasia indecifrável de sempre. Olhou pra mim, bateu palmas e disse: “Isso, Briza, o Carnaval vai lhe agradecer!”

Ri, sem entender e ele continuou: “é a gente recebe tanto, vibra tanto, canta, dança e o quê a gente dá em troca?”, respondi que não sabia. Ele apontou pra mim e disse: “isso!”.

E aí, foi a vez dele achar graça do meu “como assim” estampado no rosto: “é que quando a gente se veste, se enfeita, pra deixar a festa mais bonita é como se retribuísse a alegria que ela dá pra gente, é uma troca, sabe? É o mínimo que a gente pode fazer.”

Acho que nunca na vida concordei tanto com meu pai. Acho que nunca na vida concordei tanto com alguém.

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brizam
Comunidade da Escrita Afetuosa

alegrinha como florinha amarela, desejando as finuras, violoncelo, violino, menestrel e fazendo o que sei, o ouvido no teu peito pra escutar o que bate.