Cheiro de saudade
Atrasada para chegar ao trabalho. Fui obrigada a mudar o caminho de todo santo dia. Ano eleitoral. Obras que não acabam mais. Trânsito infernal. Tudo parado. Buzina. Muito buzina . BI BI BI BI BI! Um cheiro invade o carro. Espera. Que cheiro é esse? Tem outro cheiro chegando junto. Avenida parada. Bombeiro ultrapassando. SAMU berrando! Desligo a mente do trânsito. Não tem jeito. Vou ter que pagar hora no final do expediente. Os cheiros cada vez mais fortes. Olho para os lado e vejo: a primeira imagem é uma fábrica de café. UTAN. A segunda, bem ao lado do café, é de bolacha. MABEL.
SAUDADE. É esse o cheiro que sinto em meio ao caos da vida cotidiana. Da tão super valorizada vida de adulto. Entre buzinas e palavrões de motoristas e passageiros estressados, sinto a presença dela. Vó Gê. Volto imediatamente à infância e adolescência. Aquelas sim etapas da vida que valem a pena. Fecho os olhos e ouvidos para o lado externo do entorno. Ouço seu velho relógio de cuco mostrando a hora mais feliz do meu dia: 14h. O café acabou de ser passado. Utan extra-forte. Um pote enorme com uma variedade maior ainda de bolachas. Mabel. A campainha tocando e o padeiro gritando: o pão chegou! Tá quentinho. Em seguida a irmã da vovó entra (elas moravam uma de frente para outra). As três netas que ficavam em sua casa depois da escola correm para a mesa. É a HORA DO CAFÉ.
Mas antes da comilança, temos que ouvir o jogo do bicho. Vovó era uma apostadora ferrenha. Vovó enchia nossas xícaras, e passava margarina no pão das netas. Tudo regradinho para durar o mês inteiro. Sempre brigávamos quando percebíamos que o pão da outra tinha mais margarina. Parecia o início da 3ª Guerra Mundial. De sexta-feira ela autorizava que colocássemos Nescau dentro do pão junto com a margarina. Aquilo era felicidade. Pura. Simples. Duas vezes no mês ela fazia bolo para acompanhar. Uma queria de fubá, a outra de chocolate e outra de milho. Tínhamos que entrar em um acordo, afinal, dinheiro não cai do céu.
Dia de chuva era mais especial ainda: além do café, da bolacha e do pão, tinha bolinho de chuva. Aquele cheirinho de canela misturado com cheiro de chuva. Quando víamos qualquer nuvem no céu, vovó pedia pra irmos no quintal fazer a dança da chuva, porque sem ela, nada de bolinho.
As buzinas aumentam. FON FON FON! Sinto que o carro deu um solavanco pra frente e os cheiros já não estão mais lá. “Você conseguiu dormir nos vinte minutos que ficamos parados”, conta meu marido. “Dormi não, amor. Estava sonhando acordada mesmo”. Acho que vou vir por esse caminho mais vezes.
Marex4