Cozinhando às escondidas

Anabeatriz
Comunidade da Escrita Afetuosa
3 min readMay 15, 2024

“Bianca, pega a faca e faz assim óh.” Foi o que minha mãe me disse, em um tom irritadiço a demonstrar sua pouquíssima paciência em me explicar o melhor jeito de descasar as batatas.

Mamãe era mestre na cozinha. Cozinhava rápido, sabia muitas das receitas de cor, seu tempero conquistava as pessoas. Seu cardápio era variado, comida brasileira, italiana, francesa e até mesmo iguaria croata, fazendo jus a sua avó dessa nacionalidade. Mas nem sempre foi assim, a habilidade foi aprimorada após o seu casamento.

A comparação da comida da mãe com a minha, a da única filha mulher é contínua. “olha o jeito que ela segura a faca, o dedinho para cima…hahahaha”..”se, ao menos, você cozinhasse como sua mãe, ia prender o marido pelo estômago.”

O ensinamento não me foi passado de uma geração para outra. E a chacota se tornou uma constante. “A Bianca é ruim na cozinha.”

Morando sozinha, eu me arrisco na cozinha. Coloco a água para ferver, despejo o spaguetti na panela e, sem tanta habilidade, uso o garfo para ir mexendo a massa. Para o molho, decido cortar três tomates, regá-los com sal e azeite e uma pitada de pimenta do reino. Uma folha de manjericão para decorar. O prato me parece lindo, mas ouço vozes. Vozes de um crítico interno e externo. “ela não sabe nem fazer macarrão”, “que comida insossa”, “você não faz nada direito, menina.”

Tapo os ouvidos e fecho os olhos. Tento silenciar as vozes. Eles não estão aqui. Pratico um exercício interno de programação neurolinguística. “conte com você, conte com você, você é sua melhor amiga.”. Arrumo a mesa bem bonitinha para mim, toalha branca, louça branca a refletir o macarrão ao sugo e uma taça de vinho tinto. Que banquete, penso eu.

Dias depois, recebo o Pedro para jantar. Ele, pior cozinheiro do que eu, especialista em miojos e enlatados. Ele prova o mesmo macarrão que fiz sozinha na semana passada. Ele acha bom, repete. Desconhece a fama de “má cozinheira — não sabe nada” que ostento da minha mãe. Até ouso fazer um pudim de leite para ele, seguindo as orientações do áudio de voz da minha amiga chefe de cozinha.

Nas datas festivas da família, eu não me voluntario a levar nada pronto, nem um pratinho sequer. O máximo que me atrevo é buscar um doce já pronto de alguma doceira famosa ou um pote de sorvete no supermercado.

Na última Páscoa, Felipe, meu amigo, estava sozinho. Nós o convidamos para almoçar na casa da minha mãe. Ele se prontificou a cozinhar. Fiquei como sua ajudante de cozinha, picando os legumes, ajudando a dessalgar o bacalhau. Estava me achando útil, desenrolada. Até que tio Paulo entra na cozinha e começa a gargalhar. “Ela não pega direito na faca. Está pior que aprendiz.”

Minha autoconfiança culinária despencou. Nem mesmo a lembrança do jantar dedicado ao Pedro foi capaz de recuperá-la. Esqueci de muitos quitutes que fiz sozinha e que ficaram bons. Só pensava nas chacotas, da fama que se espalhou na família de que “ela não é uma boa cozinheira”.

Eu me sentia uma estranha na família, até mesmo os homens sabem cozinhar pratos mais requintados. Cogitei até fazer um curso de culinária básica.

Mas eles não sabem. Já busquei vídeos na internet e ficava atenta ao modo como o influenciador elaborava os pratos. Alguns, eu já dominava. Já não compreendia como gastar caro em um prato de strogonoff. Seu preparo está na categoria de fácil para mim. Estou aprimorando os bolos caseiros.

Levar um pouco para os familiares experimentarem? Não. É segredo da chefe.

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