Ela partiu…
Abriu a porta, jogou as coisas em cima da poltrona e foi direto para o quarto. No momento que saiu do banho estranhou o silêncio que pairava no ar. Não era de costume a água da pia não estar escorrendo, o barulho das panelas batendo e o cheiro de comida já ter espalhado por todos os cômodos daquele micro apartamento que sempre obrigava ele a abrir todas as janelas que encontrava pelo caminho. Até o rádio velho estava em silêncio e a voz cantando baixinho não se ouvia. Olhou ao redor, nenhum som ou movimento de vida. Sentou na poltrona, ligou a TV e ficou rolando a tela do celular até pegar no sono.
Acordou de sobressalto com o barulho no corredor. Correu, abriu a porta e só ouviu o vizinho do 304 fechando as 5 trancas que ele abria e fechava todo o santo dia. Quem poderia entrar nesse prédio antigo e escolher justo o apartamento 304 entre os 96 existentes no prédio? Fechou a porta e a mente voltou… Bateu aquele segundos de quase medo em que a cabeça leva a gente para situações extremas e adversas. Onde será que ela se meteu? Olhou a tela do celular… 2h21, nenhuma mensagem, nenhuma ligação perdida.
Quando foi a última vez? O que eu estava fazendo? O que ela estava falando? Qual foi a nossa última conversa? Qual foi a última coisa que eu falei pra ela? Ele tentou voltar lá e não lembrou de nenhuma briga, uma discussão, nem se quer um desentendimento. Estava tudo bem, tudo como sempre foi durante… os 3 últimos anos? 3 anos em que as nossas vozes foram ficando curtas e breves demais, que os nossos olhares já não se cruzavam para habitar os sentimentos íntimos e que tudo foi ficando pra fora daquele apartamento em que a gente depositou sonhos e futuro.
Olhou de longe a cozinha e estava ali, sem voz, sem som, limpa, branca, parada. As panelas penduradas em seus devidos lugares onde nunca estiveram, enfileiradas, organizadas, brilhantes. A frigideira grande, isolada embaixo da bancada, que cozinhava a melhor galinhada que ela só fazia para nós porque dizia que eu era o único que nunca tinha experimentado a verdadeira receita da vó. A bacia manchada das frutas amassadas, a lata do panetone que ela pediu de natal, só porque queria muito a lata vermelha pra guardar o pão amanhecido. A nossa panela de pipoca em cima da bancada que eu já nem sabia que ainda habitava aquela cozinha. Foi esquecida porque não tínhamos mais os fins de semana longos “maratonando” a série que nunca acabava.
Dias foram passando e ele continuava lá, sem sair, sem mexer em nada, observando tudo para achar alguma pista. O fogão limpo, tão branco, tão íntimo a imagem dela parada em frente, molhando a colher nas panelas e experimentando tudo que tinha sobre ele. Ele não ligou pra ninguém, dentro dele sabia que aquela cozinha não foi abandonada, descartada, não… foi uma saída com despedida, com ponto final, com certeza da partida.
Observava cada objeto ali deixado e resgatou tudo que ele tinha deixado para trás, inclusive ela. A xícara encontrada na Feirinha da Benedito Calixto, que no momento fez os olhos dela se encher de lágrimas ao lembrar da vó, e que ali foi a certeza de que ela era a mulher para dividir o resto da vida dele. Os paninhos comprados em cada viagem feito juntos pendurados no prego do quadro quebrado. Tudo sempre foi tão simples, tão certo e ao mesmo tão intenso entre eles… Entender quando ele se perdeu daquilo tudo, doía mais que a própria solidão que aquele momento habitada as paredes daquele apartamento. Ele já vivia na solidão, mas o barulho e o cheiro que vinha daquela cozinha e que inúmeras vezes o incomodava, hoje ele percebia que habitava o mundo deles.
MarEx1