Entupimentos e coisas a dizer

Gabi Canhete
Comunidade da Escrita Afetuosa
3 min readMar 24, 2023

Tivemos uma conversa difícil. Coisas da alma sendo faladas em um tom não tão bom assim. Eu comecei dizendo como me sentia. Ela se sentiu sendo atacada, ou julgada, tanto faz. Já fazia um tempo que me sentia assim, mas não conseguia dar um nome pra isso, ou entender a raiz dessa emoção. E ai, que simplesmente falei. Chorei. Discutimos. Até a hora que ela falou algo do passado. Algo distante dessa pessoa a qual agora eu sou.

Na hora silenciei. Fiquei sem reação. Não lembrava do que ela dizia e até agora não lembro. Não lembrava dessa cena específica, mas senti no corpo o que sentia na época. Um tempo em que me descobria. Aliás, em que queria me descobrir na verdade. Terminei a faculdade, fui promovida na agência que até então estagiava. Tudo certo. Mas não. Tinha sede de saber quem era. Foi ai que minha memória me levou. Não para o que ela se referia. Mas sim para a forma como me sentia, e como fiz ela se sentir. E depois de alguns minutos de silêncio interno, senti uma compaixão tão grande, que me fez querer abraça-la forte. Pedi desculpas por tê-la feito se sentir assim. E isso me mostrou coisas que precisava saber.

No dia seguinte acordei com uma sensação de “que bom” que bom saber dessa pedra que ela guardava em seu sapato e em seu coração. Sai cedo de carro para levar o Miguel na recreação, ainda digerindo aquela conversa. Até que meu pensamento encontrou paz na voz de Gilberto Gil. “Tempo rei. Transformai as velhas formas do viver”. Segui dirigindo e fui sendo invadida por uma emoção gostosa de sentir. Limpeza na alma. Lembrei que o dia anterior, foi dia de Iemanjá. E da mentalização que fiz para que as águas levassem o que mal que aqui pudesse estar. Não sei exatamente no que você acredita. Mas eu acredito na força do universo. Das águas. Da terra. Da fogo. Das plantas. Das rochas.

Voltei pra casa. Raquel, que me ajuda na organização da casa, estava com baldes e panos na cozinha. “A pia entupiu Gabi”. “Sério Raquel?”. De fato, olhei e vi uma pia cheia de água parada. E assim, iniciamos uma tripa jornada. Depois de muitas tentativas, Raquel abriu a caixa de gordura, enchi um balde com água e João pegou o desentupidor.

Ele começou a pressionar a boca da pia e eu auxiliava a Raquel lá fora, quando de repente, a sujeira começou a sair. Era muita sujeira. Uma gordura densa, de mal cheiro, saia com força e intensidade com a pressão feita pelo João. Tiramos aquela sujeira da caixa de gordura com uma peneira e um balde e joguei num monte de folhas e terras no fundo do terreno. Cobri com terra. Para que aquilo se transformasse. Se degenerasse. Lembrei da conversa no dia anterior. No que foi dito. No que não foi.

Muitas emoções se decantam em nós. Outras vão se espalhando em inúmeros pedacinhos, que sozinhos, aparentemente não são nada, mas que quando se juntam formam um dreno nas nossas emoções. Esse dreno pode fazer com que algumas situações deixem de fluir. Cria-se um obstáculo, uma contenção. Como uma pia entupida. Um entupimento não acontece da noite para o dia. Não. Todo dia um restinho de comida passa pelo cano e se armazena ali. Com o passar do tempo, esses pedacinhos se consolidam e bloqueiam a passagem. Impedindo o fluxo da água.

E dai que temos uma sutil ignorância de evitar que esses “imprevistos” aconteçam na casa. Quem ai curte um cano entupido? Eu não. Adiamos a conversas difíceis. Às vezes sentimos medo de falar. Outras vezes deixamos pra lá. Na esperança que aquilo se dilua em nós. Mas não. Essa conversa deixada pra trás vai entupindo nosso próprio fluxo interno. Sentimos uma ligeira indigestão. Outras vezes, com a gente não acontece nada, mas olhamos ao redor, e lá está nossa casa a falar. Afinal, nosso lar é espelho. Mesmo sem termos total consciência disso. Depois disso, só agradeci. Por minha casa ter posto da fora também algo tão denso.

Desafio Aurora / Março / Escrever a partir de uma conversa

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Gabi Canhete
Comunidade da Escrita Afetuosa

Escrevo para por a casa em ordem. Seja bem vinda(o) ao Que Habita Em Mim.