Experimentos na cozinha do sítio

Anabeatriz
Comunidade da Escrita Afetuosa
3 min readMar 29, 2024

As curvas da Regis Bittencourt não dão trégua. Depois do túnel, ficam ainda mais sinuosas. A placa pede para reduzir a velocidade. Os caminhões se amontoam rumo ao sul do país. É preciso cuidado para ultrapassá-los nas curvas que se seguem até próximo a Registro. Ali, respiro aliviada. É uma reta só até a Cananéia onde fica o sítio do Felipe.

A obra da casa ainda está inacabada. Falta fechar o teto com gesso, colocar a porta da suíte, o piso no quarto de visitas.

No geral, já está habitável e Felipe se mudou sozinho para lá. Fez do segundo quarto seu ateliê, espalhando suas esculturas sobre a escrivaninha. O sofá largo o abriga em suas longas tardes de filmes e vídeos no “Youtube”. As roupas ainda amontoadas sobre a mala em seu quarto.

A cozinha foi a primeira que ficou pronta. O pedreiro conseguiu a tempo colocar os azulejos brancos na parede, antes da mudança repentina de Felipe. Ele parou de pagar o aluguel do apartamento em Santos e decidiu ir morar no sítio, apressando os trabalhadores às vésperas do Natal.

O fogão de quatro bocas já estava lá antes da obra, adquirido na liquidação da “Black Friday”. Pegou umas panelas antigas da mãe. Dela, também herdou os panos de prato, pouca louça. Os armários de cozinha ficarão para depois. Não integram o orçamento da obra, que estourou o planejado.

Felipe cozinha pouco, nem sei como vai se virar sozinho. Macarrão, miojo, salsicha, arroz empapado, comida pronta. Ele prefere fazer um café com leite e pão e sentar-se na área externa da cozinha, contemplando as montanhas ao fundo.

A limpeza da casa é de sua responsabilidade, e nisso ele é bom, meticuloso. Acomodou seu par de luvas e produtos de limpeza em um balde e os acomodou na bancada da cozinha. Estipulou segunda-feira como o dia da faxina pesada, os outros dias para o que estiver sujo, como a pouca louça na pia da cozinha.

Ele, sempre hipocondríaco, ainda mais com a cerração e o clima úmido do outono, organizou seu arsenal de remédios sobre a prateleira da cozinha, ao lado da janela. Ainda não tem nenhum armário ou gabinete no banheiro para isso, apenas a pia e um espelho antigo sobre ela.

Nos fins de semana, os funcionários do sítio não vem. Quando não estou lá, Felipe mergulha nas suas telas, a de pintura e a do celular. Durante a semana, suas companhias são o caseiro que chega por volta das seis da manhã e os pedreiros meia hora depois. Às vezes, ele vai na casa dos pais no centro da cidadezinha, ou se aventura indo na cidade vizinha.

Naquele sábado chuvoso, atreveu-se a fazer quentão na panela de alumínio que era mãe desde a época em que seu irmão caçula nascera. Derreteu o açúcar, colocou a cachaça que comprara na vendinha do centro, cortou as cascas de limão, deixando meio limão sobre a bancada da cozinha.

Brindamos com as xícaras de porcelana, estas presentes do primo, ao som dos latidos dos cachorros que vigiam a casa e do relincho do cavalo do vizinho.

Na noite seguinte, o frio permanecia. O piso de porcelanato não deixa a casa tão aquecida nessa época do ano. Felipe se arrisca mais uma vez na cozinha. Dessa vez, ele decidiu fazer canjica. Pegou a frigideira que estava pendurada na parede, aqueceu o fogo e começou a colocar os ingredientes. “Me dê mais um tempo que vou virar um chef de cozinha”, disse ele.

--

--