Fome extrema

Deana Guimarães
Comunidade da Escrita Afetuosa
2 min readMar 22, 2024

Ele sente fome. De afeto. Presença. Sente seu cheiro ainda em todos os cantos. Na cozinha, impregnada de sabores, nos lençóis que guardam resíduos da sua pele, no aroma suave de lavanda que se espalha pela casa inteira.

Não mexeu em nada. Tudo estava do jeito que ela deixou, principalmente na cozinha. A bandeja em cima da bancada, com a xícara de chá esperando por ele. Panelas brilhantes, enfileiradas como vassalos aguardando as ordens. Fogão impecável, pronto para ser usado, para ser fogo que transforma banalidade em especialidade.

Esse era o seu lugar preferido. A cozinha branca. Dizia que tinha que ser branca para ser limpa. Pequena, simples, incompleta na forma, perfeita na alquimia que se materializava em camadas de sabores, espaço onde ela reinava soberana. Ali temperava o conforto, a pipoca e o guisado que aprendeu com a mãe. Sempre gostou de cozinhar. Colecionava receitas e sonhava com uma cozinha moderna, dessas de capa de revista.

A casa, herdou da mãe. Pequena no tamanho, cabia grandes sonhos. Tinha planos de reformá-la, principalmente a cozinha, que ainda permanecia como sempre foi. Havia o desejo de mudança. E também apego. Aquele espaço, branco como sala de hospital, tinha algo de curador, abrigava lembranças, momentos saborosos de toda uma vida.

Foi lá, na cozinha branca que ela fez o primeiro cafezinho que serviu com pão de queijo para ele. Lá trocaram o primeiro beijo, fizeram promessas, planejaram o futuro. Em meio a temperos, aroma de alho frito e água fervendo.

Na cozinha, ele sente ferver também o seu sangue. De saudade. Cada objeto naquele espaço conta algo dela. Dos dois. Os pegadores de panela pendurados na parede, compraram juntos na feira de artesanato da praça do bairro, pouco antes do casamento. Aquela xícara de chá foi a única que sobrou do enxoval da mãe, ela cuidava como uma preciosidade. A lata vermelha seria para guardar açúcar, mas acabou servindo para os pães que sobravam. Tinham o hábito de tomar chá com torradas caseiras e geleia de maracujá. Para acalmar, dizia ela.

Um intenso aroma de maracujá ainda impregnava o ambiente. Ela ia preparar o doce quando uma forte dor no peito interrompeu o tempo. O futuro. A vida.

A fome é extrema agora.

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Março — exercício 1 — escrever a partir da observação da foto (cozinha)

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Deana Guimarães
Comunidade da Escrita Afetuosa

Arquiteta, Designer gráfica, escritora. Publicou "O Universo de João Curioso" (infantil) "Fio da Meada" (contos) "Entre Conversas e Silêncios" (Crônicas)