Fora da minha ilha

Lorena Andrade
Comunidade da Escrita Afetuosa
4 min readJan 17, 2024

Era um dia qualquer das férias de fim de ano. Afinal, nas férias todo dia parece um pouco igual. Quando se é criança, ainda mais. Éramos uma família qualquer também — mãe, vó, irmão, dois tios, dois primos. Todos num mesmo carro — meio apertados, sim, mas quem nunca enfiou um monte de criança, mala e pacote de biscoito esfarelento dentro de um carro 1.0 rumo à praia que atire a primeira pedra. Não precisava ir muito longe para ver vários carros na mesma situação. Na verdade, não dava pra ir nem pra longe, nem pra perto — estávamos todos parados na fila interminável, quente e sufocante para pegar o ferry boat em Salvador rumo à Ilha de Itaparica. No rádio, Ivete cantava “Eu morava numa ilha perdida e deserta…”. Não poderia ser mais irônico. Ao contrário do hit da época, estávamos indo pra uma ilha bem achada e cheia — e a fila quilométrica de automóveis no aguardo do próximo ferry anunciava que a previsão era de superlotação daquele punhado de terra.

Eu tinha por volta dos 10 anos. Ou, pelo menos, idade suficiente pra saber que viajar não era o meu forte. Minha mãe já tinha um manual de instruções para eu não passar mal quando andava de carro ou de ônibus — olha pra frente, mira num ponto fixo, senta ereta, cheira limão. Naquela manhã, eu já tinha o bê-a-bá de cor, mas nada disso adiantava quando se estava parada dentro de um carro cheio, sob um verão escaldante — com um sol torando, como se diz na Bahia — no meio de uma avenida cheia de outros carros igualmente abarrotados, naquele bafo de calor irrespirável que juntava a falta de vento com a fumaça cinza dos motores. Não deu outra pra menina de estômago frágil. O suor que escorria do meu pescoço e os arrepios no braço anunciavam a novidade: era dia de dor de barriga.

Fiquei quieta. Não queria criar alarde. Sim, eu era a criança boazinha que não dava trabalho. Uma dor de barriga no meio de um engarrafamento não fazia parte da minha performance de menina perfeita. Para todos os fins, eu só estava enjoada com o calor. Vidro do carro abaixado, prato plástico como abanador e uma garrafa de água que há muito tempo deixou de ser gelada eram meu kit sobrevivência. Mas não tive tempo para esperar meu Oscar de Atriz Revelação. A dor apertou e precisei sair da personagem. Mãe, preciso muito ir no banheiro. Minha mãe não estava acostumada em me ouvir pedir coisas — em “dar trabalho”, segundo minha cabecinha da época. Se eu dizia que eu precisava ir ao banheiro, é porque eu precisava mesmo ir. Sem titubear, ela me pegou pela mão e fomos andando em meio aos carros na estrada à procura de um ponto de apoio, loja de conveniência, qualquer lugar que pudesse ajudar. Me senti em meio a uma provação divina, tal qual Jesus caminhando no deserto. Será que Ele teve piriri também? Imagina o calor… e aquelas roupas… pelo menos eu tenho onde me sentar. E uma garrafinha de água. É, Jesus sofreu mais do que eu. Cadê o banheiro? Os devaneios me ajudavam a distrair a atenção. Apertamos o passo. Mas cadê o banheiro?

Achamos. Ufa. Alívio. Um coral de anjos cantava com harpas ao meu redor. A experiência mais sublime, catártica, o êxtase da aventura humana na Terra — parafraseando um outro famoso axé. Poucas coisas nos unem enquanto humanidade como a satisfação de conseguir ir ao banheiro quando a situação é urgente. Eu ainda não tinha noção de que estava vivendo ali uma experiência civilizatória. Minha mãe também não. Por isso, tão logo eu me senti melhor, já fizemos o caminho de Santiago de Compostela para retornar ao carro.

De volta ao banco de trás, eu era outra criança. Alegre, falante, comecei a conversar com minha mãe sobre tudo — inclusive das minhas brincadeiras. Eu era uma criança tímida e introvertida. Brincava mais com a imaginação do que com coisas físicas. Por isso, quem vivia fora do meu mundo não conseguia entender minha diversão. Contei para minha mãe que eu tinha um canal de TV. E que várias brincadeiras minhas eram, na verdade, programas desse canal. Eu fazia novela, culinária, programa de calouros e até jornal. Mas o grande sucesso de público e crítica era meu programa de leitura. Ao invés de simplesmente sentar na minha mesinha do quintal e ler um livro, eu fazia toda uma abertura, criava um jingle pra cada história, falava com meus espectadores sobre o que iríamos ler e, só depois de tudo isso, eu começava a leitura. E lia alto, em tom bem teatral, pra cativar mesmo minha audiência.

Eu nunca tinha contado do meu programa pra ninguém. Era um dos meus segredinhos, como tantos outros. Mas estava ali, animada, contando o que eu fazia. Eu esqueci o restante da família no carro e das outras tantas famílias ao nosso redor. Éramos só eu e minha mãe. E um pedacinho do meu mundo mágico que eu decidi compartilhar. Não sei se ela se deu conta disso. Os adultos têm dificuldade de identificar o que é precioso para as crianças. Penso que ela creditou minha alegria à dor de barriga resolvida. Mas uma parte inconsciente de mim sabia que não. Naquele dia eu entendi que ela era a minha mãe. Que ela era responsável por mim, e não o contrário. Entendi que eu podia pedir ajuda. Na minha cabeça de criança boazinha, perfeita, que nunca dava trabalho, eu fiz uma descoberta tão mágica quanto minhas brincadeiras: no mundo real, eu podia ser só uma criança qualquer.

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