Lorena Andrade
Comunidade da Escrita Afetuosa
1 min readMay 26, 2024

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Gaveta

Cômoda de madeira, primeira gaveta. Nela, três caixas organizadoras coexistem e dividem os materiais que faço uso. Chamo de “organizadoras” não por estarem realmente arrumadas — os objetos se sobrepõem uns aos outros numa desordem que só a mim faz sentido — mas por se organizarem cuidadosamente ao longo do tempo e espaço na minha vida.

Lá no fundo, mais escondida à esquerda, está a caixa de maquiagens, remexida, no geral, só uma vez no ano — no Natal, quando as árvores e luzinhas me inspiram a também me enfeitar. Na lateral direita, atravessada na vertical, fica a caixa de absorventes, aberta uma semana por mês quando meu ciclo se renova. Na frente, em destaque, fica a caixa de todo dia — creme de cabelo, desodorante, protetor solar e outras quinquilharias que dia sim, outro também, penso que já deviam ter ido para o lixo.

Nessa pequena e mercantilizada cápsula do tempo, encontro uma fotografia do meu corpo: do sangue que sai de minhas pernas, das texturas que penetram a pele, das cores que pintam meu rosto. Em sentido horário, revela-se o sentido das urgências, que brincam entre o todo dia e o quase nunca. No barulho do abre e fecha da gaveta, compõe-se a melodia de uma vida vivida — de uma mulher presente no hoje e numa vida inteira.

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