GENTE É PRA BRILHAR
Sempre gostei de gente. Algumas pessoas afirmam preferir os animais. Não lhes tiro a razão. Os humanos se excedem em perversões e egoísmos, são teimosos, cansativos, falantes demais, falantes de menos, inconvenientes, grosseiros.
Noite fria de junho. Fria não. Gélida. A mais fria daquele ano pós-pandemia. Uma noite e tanto para estrear um cachecol. Marina tirou o novo acessório do armário e deu o nó perfeito para uma menina de 10 anos. Saímos. Estacionei o carro na porta da drogaria, e como mágica, ele se aproximou vindo de não sei onde.
- Moça, só falta 10 reais pra inteirar uma diária na pensão. Só 10 reais para que eu e minha mulher não dormir na rua. Tá frio demais.
- Não tenho 1 real.
- Aceito maquininha.
- Maquininha? Como assim?
- Vendo balas no farol durante o dia. Tenho uma maquininha de débito. Ninguém mais usa dinheiro.
A prova que não existe mais dinheiro acabara de se materializar na minha frente. A esmola não é mais aquele dinheiro dobrado na carteira ou moedas empilhadas na estante, a esmola agora viaja pelos aplicativos de banco. A esmola é digital, oficialmente.
Sentindo o ar frio nos ossos, fui incapaz de recusar o pedido. Não tem consciência que deite no travesseiro e descanse sem uma atitude diante daquela situação.
- Ok, Passa 20 reais aí.
- Nossa, obrigado. A minha mulher vai ficar muito feliz.
Enquanto eu digitava a senha, um pouco aliviada, um pouco desconfiada, Marina, espontaneamente, tirou o cachecol do pescoço e ofereceu àquele homem jovem, alto, magro, barbudo e de óculos. Ele se voltou para ela, percebendo que era um item precioso para a pequena:
- Não precisa, pode ficar. Olha! Não, menina, ele é seu. Moça, ela está me dando, disse como quem pede autorização para ficar com o presente.
Eu acenei com a cabeça, autorizando.
A menina: — Eu tenho outro. Você precisa mais.
- Puxa! Vou dar pra minha mulher, ela vai adorar. É lindo. Obrigado mesmo. Obrigado. Moça, você está criando a sua filha para ser gente. Como ela chama?
- Marina.
- Quando eu tiver uma filha vai ser Marina.
Entramos no carro e a menina entrou em êxtase. Uma alegria infinita transbordava pelos vidros do carro. Ela não cabia em si e me contava em detalhes o que eu já havia presenciado.
-Mãe, você viu como ele ficou feliz? Mais feliz que ele, estou eu.
Gente é capaz de tudo. Do ruim, e do bom. E isso me faz gostar de gente.
Ontem ouvi o Dalai Lama dizendo que a verdadeira alegria está em oferecer ajuda ao outro.
Aquela menina que aos 4 me perguntou por que tanta gente morava na rua; que aos 7 me perguntou por que o shopping não abrigava as pessoas para que dormissem embaixo de um teto; aos 10, numa noite fria e despretenciosa, experimentou a alegria.
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