Gentileza para a vovó

Roberta Assumpcao
Comunidade da Escrita Afetuosa
3 min readJul 20, 2023

“Ela é muito gentil, quero que a trate com gentileza aqui também”.

Com essa frase, no meio do corredor do hospital, enquanto não conseguia segurar a água que pulava dos meus olhos, conversei com o médico que me dava um diagnóstico terrível sobre minha avó. Seu estado era gravíssimo. Seria muito difícil ela sair do hospital, por isso a família deveria planejar até onde os cuidados iriam. Ninguém quer ouvir isso. Muito menos tomar essa decisão.

Para quem nunca vivenciou a morte de um ente muito próximo, me pareceu estar vivendo dentro de um filme que não tem botão de “pausa”.

Mas, aos soluços, decidi. Deveriam tratá-la com gentileza até o fim.

Com o diagnóstico no coração, entrei no CTI para me despedir.

Ela estava deitada em uma cama no canto da sala, amarrada nos pés e mãos. Vários médicos e enfermeiros sentados perto do computador, batendo papo como se eu não estivesse vivendo uma tragédia pessoal. Para eles, era só mais uma segunda-feira.

Minha avó nunca foi daquelas avós fofas e amorosas. Aquelas que abraçam e enchem de beijos os netos, sempre com uma palavra acolhedora, sabe?

Pelo contrário.

Não me lembro de nenhum beijo dela. Sempre de poucos carinhos e poucas palavras. Presente. Só que calada. Sorrindo e respondendo “aham”, constantemente feito coadjuvante. Mas sempre lá, presente. Engraçado como uma mulher calada pode deixar um vazio enorme em apenas um dia.

Durante minha juventude, por causa de sua personalidade introspectiva, não valorizei o suficiente os bolos salpicados com milhares de bolinhas de chocolate que ela fazia todo aniversário para mim. Ou as saias de princesa que meninas dos anos 80 com muita criatividade pediam para costurar.

Não valorizei sua biblioteca, onde me encantei pela primeira vez por uma coleção de livros. Monteiro Lobato. Impossível esquecer o cheiro daquelas páginas. Não entendi na época que ela me ensinou a ser a leitora que sou hoje.

Não valorizei sua companhia nas viagens, nos apresentando aos países que já havia visitado. Apesar de caladinha, era uma viajante profissional, daquelas que conhece um lugar antes de todo mundo.

Inteligentíssima, podia falar sobre qualquer assunto, ainda que se restringisse a dar um breve comentário. Deveria ter pedido mais. Ou pelo menos aprendido sobre plantas e flores, seu assunto preferido. Como não pensar na vovó ao pesquisar o nome técnico de uma planta? Sua preferida acho que era a rododendros, vulgo azaléia, que ela mantinha aparada em seu jardim.

rododendros ou azaleia

Na hora de me despedir vomitei tudo que guardava em minha alma. Pareceu um momento de descarrego, quando as palavras saem da sua boca sem você se dar conta. Agradeci por ela ter aguentado tanta coisa calada em nome da família. Agradeci por tudo que fez por nós. Disse que honro a avó que foi para mim. Agradeci por sua gentileza.

Minha avó sofreu uma embolia pulmonar numa segunda-feira, na hora do almoço. Às 16 eu estava na sala me despedindo dela. Às 18 ela subiu para o CTI.

Em 24 horas ela deveria esboçar algum resultado ou seria o fim.

O médico que me viu chorar e escutou minha despedida, foi o mesmo que gentilmente nos disse que ela sobreviveu. Iria para casa. Um milagre. Ninguém entendeu nada.

Apenas eu.

Ainda há tempo.

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Roberta Assumpcao
Comunidade da Escrita Afetuosa

Escritora amadora que tecla compulsivamente para alcançar as 10.000 horas de treino que te torna profissional. Quer tc? : @palavruda