Lágrimas com açúcar

Ana Paula Correa
Comunidade da Escrita Afetuosa
3 min readMar 26, 2024

O motorista particular estacionou em frente ao endereço fornecido. Um casebre bem deteriorado num buraco da periferia. Lugar onde jurou nunca mais colocar os pés. Era um lugar de dor. Mas também de amor. E recomeço. Por isso, mesmo depois de tantos anos, se recusa a vender o imóvel. Lembranças.

Madalena, agora conhecida como Madá, desceu do veículo e dirigiu-se a entrada: respirou fundo e abriu a porta. Ficou arrepiada. Deu uma passada de olhos pelo lugar e seguiu até o único cômodo que lhe emocionava: a cozinha.

Lá também derramou muitas lágrimas. Mas foi o lugar que deu início a transformação de sua vida. Casou muito menina com um homem vinte anos mais velho. Pra fugir da pobreza da casa dos pais, aceitou logo o pedido de casamento. O marido também era pobre. Mas tinha uma casinha. Onde iriam começar sua família. O encanto acabou logo nas primeiras semanas: apanhava de dia, de tarde, de noite. Com sol e com chuva. Quando engravidou, achou que teria uma pausa. Que nada. Milagre foi ter conseguido parir duas crianças sem sequelas.

Trabalhar fora de casa era assunto proibido. Assunto que a levou aos hospitais inúmeras vezes: um tropeço no corredor, um tombo da cama, uma calçada escorregadia. Os médicos fingiam acreditar.

Naquela cozinha minúscula, toda de cerâmica branca, um fogão de quatro bocas com um forno mediano e inúmeras panelas — porque nisso o marido não economizava, gostava de comer bem- Madalena ia limpar as lágrimas. Disfarçar a tristeza. As crianças não podiam ver a mãe naquele estado. Nada melhor do que vapor subindo das panelas e tachos para disfarçar tanta dor. Sua especialidade eram os doces. De todos os tipos, em calda, caramelizado, docinhos de festa e bolos. Muitos bolos. Quanto mais açúcar, menos suas lágrimas escorriam.

Mulher esperta que era, convenceu o marido a abrir uma portinhola debaixo do balcão para vender bolos e doces para os vizinhos. O dinheiro estava curto e ela explicou que isso não era trabalhar fora. Afinal, estava dentro de casa. Iria cozinhar enquanto as crianças estivessem na escola. E o dinheiro extra era muito necessário. As meninas estavam sem roupas e sapatos. Ele permitiu.

O boca a boca transformou os bolos de Madalena em um enorme sucesso. Vinha gente dos bairros mais nobre e pessoas da região atrás das suas delícias. Sabida que era, dava uma parte pequena para o marido e guardava o restante no fundo de uma lata vermelha. Ela sabia que não corria risco dele encontrar porque o único lugar da casa que ele não entrava era justamente a rainha do seu universo: a Cozinha.

Quando juntou um montante, alugou um apartamento pequeno, mas com portaria 24h e levou as meninas. Voltou para casa. Pediu o divórcio. Apanhou como nunca dantes. Achou que ia morrer. Mas suas pequenas estavam seguras. Uma de suas irmãs estava no novo apartamento cuidando delas. Foi para o hospital e quando saiu do coma, descobriu que seu futuro ex-marido foi preso em flagrante. Até tentou fugir, mas os vizinhos o seguraram até a chegada da polícia.

Foi assim que sua nova vida começou. Voltou para casa. Alugou uma casinha pequena para transformá-la em café e fez seu nome. Tem canal no YouTube. Foi convidada para apresentar um programa de culinária. Escreveu um livro contando sua história. Ganhou corações Brasil a fora. Como diz seus netinhos, zerou a vida. Mostrou que mesmo com dor e lágrimas , um bolo bem feito transforma vidas. Qualquer lágrima, quando temperada com açúcar, faz brotar um sorriso.

Marex1

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