Memórias afogadas

Deana Guimarães
Comunidade da Escrita Afetuosa
2 min readJun 2, 2024
foto: acervo particular

Sobraram poucos registros da minha infância. Sinto saudade da menina de cabelos encaracolados e loiros, risonha e séria, ao mesmo tempo. De vez em quando quero só olhar para ela. Procuro nas imagens impregnadas de histórias, perdidas nas águas do tempo.

Recife é uma cidade cortada por rios e abaixo do nível do mar. Sofremos, nas décadas de 60 e 70, três grandes enchentes. Nas duas primeiras, perdemos muitas coisas. Na última, tudo. A água alcançou mais de 2 metros dentro da minha casa. Dentro de mim. O muro alto, imponente, virou um amontoado de tijolos e cimento. Como estamos vendo no Rio Grande do Sul. A inundação não durou um mês, em três ou quatro dias estávamos limpando tudo, chorando o que a água levou. Memórias da família sumiram na correnteza. Fotografias, cartas, escritos, objetos, retratos de uma vida afogados como mágoas profundas. Irrecuperáveis!

Algumas poucas fotografias recebemos de volta, como um presente oferecido por quem que não foi afetado pelas enchentes. A maioria com dedicatória escrita sobre elas, como uma tatuagem de letras borradas, marcada na própria pele. Era costume oferecer, aos avós e padrinhos lembranças impressas em papel, quase um bilhete de amor.

Apesar da pouca idade, lembro do dia em que essa foto feita. Eu tinha três anos, a minha irmã dois. Meu tio chamou para “tirar retrato” como se fala até hoje. Mamãe escolheu nosso melhor vestido, costurado e bordado por ela, nos arrumou para a ocasião, rara, por lá. O cordão de ouro com o crucifixo, pendurado no pescoço era sinal de momento especial, só era usado nos aniversários e festas importantes.

Ninguém tinha máquina fotográfica na pequena cidade do interior de Pernambuco, onde morávamos. Quando a oportunidade surgia tinha que ser aproveitada. Com o cabelo amarrado num rabo de cavalo e a franja rebelde, que nunca ficava do jeito que eu queria, me ajeitei ao lado do tio.
A mana fez birra, mas depois de várias tentativas, a foto foi feita. Presenteada à minha madrinha. Devolvida anos depois.

As águas afogam nossos sonhos de vez em quando. Fazem ondas,
trazem de volta o lixo, mas também a inocência. Um clique pode captar
a eternidade.

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Maio — Exercício 4 — Escrever a partir de uma foto da sua infância

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Deana Guimarães
Comunidade da Escrita Afetuosa

Arquiteta, Designer gráfica, escritora. Publicou "O Universo de João Curioso" (infantil) "Fio da Meada" (contos) "Entre Conversas e Silêncios" (Crônicas)